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    TV Excelência (Mad Men)


    Em áreas criativas como música, cinema e literatura, há razões para saudosismo. Pouco do que se faz nelas, hoje, equipara-se em qualidade à produção do passado. Na TV, por incrível que pareça, não é assim. Basta um olhar mais atento e sem preconceitos ideológicos ou artísticos para constatar, por exemplo, que o nível da ficção criada pelos canais americanos está muito alto. Séries como Homeland, Boardwalk Empire, The Americans e as extintas House, Damages e Breaking Bad contam com diálogos espetacularmente escritos, fotografia bem estudada e personagens de constituição psicológica complexa, defendidos por atores premiados em cinema e teatro que têm, cada vez mais, vislumbrado na televisão oportunidades boas de trabalho – casos de Glenn Close, Jeremy Irons, Kate Winslet e Sally Field, entre outros. Como Seinfeld (1990-1998), ainda reprisada na TV a cabo, é melhor que 95% das comédias em cartaz nos cinemas, não é exagero afirmar que muitas dessas séries são também superiores à maioria dos filmes americanos lançados nos últimos anos. E um título fundamental dessa grande fase da televisão dos Estados Unidos é Mad Men, recém-terminada.

    A série, premiada quatro vezes seguidas com o Emmy de melhor produção dramática, reúne todos os atributos apontados no parágrafo acima, com a adição da reconstituição cuidadosa de cenários e costumes dos EUA dos anos 1960, o período efervescente em que se passa a história de Don Draper, publicitário da Madison Avenue de Nova York, e dos que o rodeiam, na família e na agência. Qual toda obra de alto valor estético, Mad Men pode ser apreciada de vários ângulos. Do ponto de vista formal, os personagens multifacetados, não divididos em “mocinhos” e “vilões”, e o texto bem escrito são os elementos que mais se sobressaem – dois, aliás, de que as novelas e séries brasileiras ainda são carentes.

    Alguns desses personagens tiveram desfechos coerentes e/ou representativos da época em que se ambienta a história, outros nem tanto. {spoilers} Que Don tenha atravessado os últimos episódios de novo em crise existencial, e no fim, aparentemente, voltado a fazer o que faz de melhor, numa sugestão de que sua vida seguirá sempre nesse compasso, foi um acerto. Dar um câncer a Betty, por mais politicamente correto que seja (todo mundo fumava até os anos 1960/70), parece, mais uma vez, clichê de roteirista americano (“Como dar uma sacudida na trama/me livrar desse personagem? Já sei: câncer!”). Ginsberg literalmente enlouquecer por causa de um computador, já nos anos 1960, quando ter uma máquina daquele tamanho era para poucos, foi uma grande sacada irônica (se, décadas atrás, computador já fazia as pessoas perderem o senso, imagine agora). Joan preterir um namorado bacana pela possibilidade de abrir uma empresa foi simbólico: as mulheres que se casam com o trabalho, tão comuns hoje, começaram a aparecer naquele tempo, por efeito colateral do feminismo. Peggy também é exemplo disso, com as decisões que tomou nas primeiras temporadas. Seu final feliz ao lado do colega, porém, pareceu superficial, repentino. O de Pete, à primeira vista, também, mas à segunda já se aceita que um medíocre como ele possa amadurecer e, uma vez na vida, ter a sorte de receber um convite que muda tudo (é possível, acreditem). Já aprovar o casamento de Roger com a mulher com quem tinha uma relação de diversão, apenas física, complica. Mas o processo, o desenrolar da história, não exatamente seu final, é o que conta mais em Mad Men.


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    E o desenrolar foi primoroso. Os poucos detratores da série, nenhum deles no progressivamente mais restrito grupo das pessoas que pensam antes de falar, acham que fazem uma baita crítica ao afirmar que em Mad Men “não acontece nada”. Pois aí que tá: tudo acontece dentro da cabeça dos personagens. A narrativa é, de fato, em ritmo mais lento que o comum em TV, mas a escolha se justifica, como meio de enfatizar, justamente, texto e investigação do caráter dos personagens. Trabalha elipses e subentendidos, outra qualidade bem-vinda num meio em que o costume é – ou era – ser explícito, didático, “redondo”, sendo que um produto cultural sempre sai ganhando quando exerce o poder da sugestão. Os roteiristas de Mad Men sabem da importância de haver silêncio numa narrativa, para que possa soar alto a ambiguidade, a abertura a interpretações. Don, por exemplo, é um infeliz contumaz; todavia, como publicitário, precisa “vender” felicidade. Tal contradição, com todas as suas implicações, só é captada das entrelinhas, não é ouvida da boca do próprio ou de outro personagem.

    Essas bocas estão mais dispostas a emitir falas inteligentes, sutis, do que a entregar tudo pronto ao espectador. Os diálogos da série têm várias das qualidades que os melhores dramaturgos buscam ao decidir que os personagens vão trocar frases numa cena: coloquiais sem serem simplórios, sintéticos (porque diálogo não é discurso), sem conteúdo trivial (nada de “Tudo bem?” “Tudo, e você?” “Ah, vou indo.”), muitas vezes com referências a outros textos.

    Vejamos alguns. The Suitcase, um dos melhores episódios, da 4ª temporada, apresenta a seguinte discussão entre Don e Peggy, sua ex-secretária ambiciosa que ele “deixou” virar redatora e que reclama de falta de reconhecimento:

    Don: É seu trabalho. Eu te dou dinheiro, você me dá ideias.

    Peggy: E você nunca agradece!

    Don: Pra isso que serve o dinheiro! Você deveria me agradecer todas as manhãs quando acorda, junto com Jesus, por te dar um novo dia!

    No episódio The Summer Man, ainda da 4ª temporada, Peggy, que acabara de demitir um estagiário que fizera um desenho malicioso de Joan, ouve dela:

    – Não importa quão poderosas nós ficamos aqui, eles sempre podem fazer um desenho. E tudo que você faz é provar a eles que eu sou só uma secretária insignificante, e você, uma vaca mal-humorada.

    Na 5ª temporada, em Dark Shadows, Don, após sabotar uma ideia de Ginsberg, o encontra no elevador (veja aqui). Ao fim de uma troca de farpas, o redator diz:

    Não me importo. Tenho um milhão de ideias. Um milhão.

    Don: Ótimo. Devo ser sortudo por você trabalhar para mim.

    Ginsberg [depois de uma pausa]: Sinto pena de você.

    Don: Eu nem sequer penso em você.

    Eis uma boa frase para anotarmos e usarmos ao encontrar aquela pessoa por aí também. Mas nem só de provocações e acidez são feitos os diálogos de Mad Men. Drama na medida certa, não aquele que leva o sufixo -lhão, faz-se presente. No já lembrado The Suitcase, Don conversa com Peggy sobre o bebê que ela deu à adoção:

    Don: Você sempre pensa nisso?

    Peggy: Tento não pensar, mas vem de repente. [pausa] Pracinhas...

    Por sinal, Peggy ter rejeitado um filho rendeu boas falas por toda a série. Uma dessas sai lá no começo, na 2ª temporada, ao fim de uma conversa em que ela, enfim, revela a Pete que tivera um bebê dele. O episódio tem como pano de fundo a Crise dos Mísseis entre Cuba e EUA, 1962. O padre da igreja que a católica Peggy frequenta, devido à possibilidade de uma guerra nuclear, a aconselha a elaborar a culpa. O diálogo com Pete começa ágil e espirituoso e termina pesado. Com isto:

    - Um dia, você está lá e então, de repente, há menos de você. E você se pergunta aonde essa parte foi, se está vivendo em algum lugar... e continua pensando que, talvez, vai tê-la de volta. E aí você se dá conta de que ela apenas se foi.

    Há as referências, ainda. As alusões a obras literárias, cinematográficas ou musicais dão-se diretamente, nos diálogos, ou indiretamente, pelo espírito de alguns episódios ou cenas. The Summer Man, que remete ao conto O Nadador, de John Cheever, e Lady Lazarus, da 5ª temporada, que remete a um dos poemas mais conhecidos de Sylvia Plath, estão no segundo grupo. No primeiro, está outro da 5ª, no qual Ginsberg, após ver um cliente adorar seu projeto de campanha, cita um verso de Ozymandias, de Percy Shelley: “Look on my works, ye mighty, and despair!”– para um colega, em seguida, recomendar que ele leia o soneto inteiro (Ozymandias é sobre ruína). A 6ª temporada traz, no episódio The Collaborators, uma cena magnífica: num jantar, Don provoca a amante, mulher de um amigo, até minar as resistências dela, com a ária Casta Diva, da ópera Norma, de Bellini, a tocar ao fundo. A música não consta ali apenas porque a ação se desenvolve num restaurante italiano: Norma trata de paixão secreta e traição. Outra referência que só a parte mais culta do público apreende.

    A trilha sonora de Mad Men, inclusive, é um espetáculo à parte. O cancioneiro americano, o mais rico do mundo, comparece com Duke Ellington (Prelude to a Kiss), Rodgers/Hart (Manhattan, com Ella Fitzgerald), e Jerry Leiber/Mike Stoller (Is That All There Is?, com Peggy Lee), para citar só três exemplos. O cancioneiro brasileiro, o segundo mais rico, igualmente comparece, até porque a MPB estava ganhando o mundo nos anos 1960: Água de Beber, de Tom Jobim, na voz de Astrud Gilberto, toca longamente num episódio, e, em outro, um personagem cita um verso da letra em inglês de Garota de Ipanema (“Tall, and tan, and young, and lovely”) para Don, ao ver a mulher dele passar. Em outro, Don ouve através da porta do apartamento da amante o rádio dela tocar a versão de Sérgio Mendes and Brasil ‘66 para Going Out of my Head, de Teddy Randazzo – porque ele estava, claro, going out of his head por ela.

    A relação de qualidades poderia continuar. Merecem elogios, ainda, atuações (destaque para Jon Hamm, January Jones e Cristina Hendricks), fotografia e direção, esta por vezes a cargo do próprio criador da série, Matthew Weiner, também roteirista de vários episódios, geralmente os mais agudos. Chama atenção, além disso, a ausência de concessões emotivas ou políticas nas tramas e a delicadeza de os fatos históricos da época, do assassinato de Kennedy ao fenômeno da contracultura, serem tratados na diagonal, pela interferência na vida de personagens, não como centro da ação. Mas basta, por ora, para entender que a série trata bem a inteligência de seu público. Dizem que ver televisão causa ignorância ou, desculpem o termo velho, “alienação”, e muitas vezes isso acontece mesmo. Não no caso de Mad Men. Afirmemos logo, para concluir: esse é um dos melhores programas de TV já feitos. E é com tal epíteto que passará à História do entretenimento audiovisual. Ou já estamos falando de arte, aqui?

    * Texto originalmente publicado no site da revista Continente Multicultural.


    lucas colombo assinaturaLucas Colombo

    Jornalista, professor, colaborador de revistas e cadernos de cultura, editor do Mínimo Múltiplo, organizador do livro "Os Melhores Textos do Mínimo Múltiplo" (Bartlebee, 2014).


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