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    O maior artista do século XX


    Um sujeito tímido e não reconhecido em vida é a maior expressão artística do mais turbulento século já vivido. Franz Kafka é o nome dele. Claro, ele concorre com figurões de alto quilate, como Ruiz y Picasso. É verdade que o artista andaluz criou um movimento que influenciou outras artes e impactou uma geração. Mas o tísico judeu inrotulável criou mais do que uma estética, um conceito: ele criou um mundo.

    O cruel da aferição, a dor da afirmativa de que ele é o nome por trás do tempo, é compreender que eu a faço por não entender absolutamente nada da obra desse estranho escritor. De fato, nenhuma explanação é satisfatória. Tampouco posso transitar sem danos pelas motivações que levaram esse obscuro artista a criar uma obra que transcende a arte, afeta a existência. Adentrá-la é como participar de um labirinto linear, cujo único desafio é perder-se dentro de si. Os seus Diários, de recém-lançada edição brasileira, talvez possam indicar alguns caminhos para se percorrer esse labirinto. São caminhos, porém, que levam em várias direções e nunca se acabam.

    Kafka é para a modernidade o que Homero foi para o Período Pré-Clássico, exceto que, para o cego poeta, as personagens ajudam a explicar o mundo, e para o tcheco as personagens são irrelevantes, porque o mundo que as circunda é o motor de sua caótica sinfonia. É o ambiente que conta, as figuras estão lá mais ou menos como José está para o Novo Testamento: apenas para preencher uma lacuna.


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    Não sem razão, ele transborda de tédio em nomear personagens, muitas das quais são batizadas por seu amigo e testamenteiro literário, Max Brod. É esse quem nomeia personagens importantes de seus romances. Quando é obrigado a batizar alguém, Kafka é econômico, como o “K.” de O Processo. Suspeito que personagens “atrapalhem” a narrativa kafkiana, são quase uma excrescência. Leitor de Aristóteles, o escritor compreendeu e levou ao limite a lição do homem como fruto do meio onde vive; em suma, seu interesse é pelo mecanismo, não pelo mecânico.

    Diametralmente oposto aos seus colegas clássicos, não nos faz deparar com personagens de grandes dilemas psicológicos, ou conscientes de seus atos e destinos, como Hamlet. A densa obra de Kafka não deixa o legado daquela personagem marcante e inesquecível que nos acompanha a vida inteira. Não teremos um Raskolnikov, um Sancho Pança, um Leopold Bloom, uma Capitu. Sua maior e mais célebre personagem nem humana é. Não é por acaso que o herói da sua mais comentada narrativa seja um inseto metamorfoseado, como se fosse o bizarro fenômeno uma elevação do caráter humano e não o contrário. Isso diz muito da psicologia sensitiva do artista de Praga.

    A exatidão na tumultuada prosa kafkiana intriga pelo que tem de inexato; a sereia de Kafka enfeitiça pelo silêncio, não por seu canto. O Homem que está diante da Lei jamais pode entrar na Lei ou descobri-la e só quando está à porta da morte, após definhar por anos de espera, é que lhe é autorizada a entrada, mas ele já não tem forças para entrar: “Esta porta foi feita apenas para você, e agora eu vou fechá-la”, diz o vigia que guarda o palácio onde reside a lei dos homens. É o Paraíso Perdido de Kafka, aqui representado como um flagelo que toma de assalto a existência humana, reduzindo-a a uma impotente estupefação. O artista agoniza no mesmo instante em que deixa fluir uma beleza precária entre o profano e o divino; ele aceita e renega sua condição judaica, e no fim da vida repele o sionismo, como se fora um antídoto inócuo de um mal que está por vir; ele se vai em 1924; o Mal ascende nove anos depois, em 1933.

    Labirinto

    Mentes potentes e distintas como as de Sérgio Buarque de Holanda, Otto Maria Carpeaux ou Elias Caneti nos introduzem com certo alento e cuidado ao universo ao mesmo tempo sombrio e luminoso de Kafka, mas sem ousar decifrá-lo jamais. Um de seus mais recentes admiradores, Philip Roth, chega a dizer que “Anne Frank é a filhinha perdida de Kafka”. O autor americano morto em 2018 se refere a uma de suas alegorias, a da boneca perdida. Kafka inocula toda a sua verve ao emprego do banal, extrai do trivial uma pirâmide íngreme e sem pináculo; ele se esforça para que o leitor nunca chegue a esse cume, porque não o encontrará. Sua magia consiste no mistério; se for decifrado, esboroa-se não só o enigma mas, sobremaneira, a arte que é o graal a ser preservado a todo o custo. Detalhes de sua biografia como esse da boneca o tornam gigante: que grande artista, sabendo a dimensão de sua existência, extraviaria o escasso tempo para contar a história de uma boneca perdida, de uma menina chorosa numa praça? A resposta é inconclusiva, mas uma pista pode nos içar pelo engenho do milagre: Kafka ignorava o próprio gênio. Como ocorre também a Van Gogh, a genialidade dele estava protegida pela não erupção.

    O essencial para o apreensivo Kafka não era a descoberta em si, mas o descortinar dela, como um mil-folhas que esconde profundo o recheio. Diferente de seu antagonista neste texto, ele é o artista que procura; o espanhol acha. Eterno dilema entre a dúvida e a certeza. Em 1906, em Paris, ele visitou uma exposição da incipiente arte cubista e deflagrou um petardo espiritual ao amigo que o acompanhava e fez pouco-caso das obras: “A imagem não está distorcida, ela está revelando o que antecipa a nossa consciência”. Depreende-se que a visão de mundo de Kafka não é afetada pelo excesso de realidade que, como queria T. S. Eliot, ninguém suporta muito; é nesse entretempo que Kafka se abre para o improvável, porque não tem interesse em vasculhar o que oferta a luz do sol. Quer suas rebarbas, suas migalhas, suas nesgas de escuridão, é aí que está o sêmen da interrogação que o movia.

    Kafka opera outro milagre que o distingue de seus pares: ele não é discípulo, nem interpretador, nem vanguarda, nem sequer se coloca como farol de nada; seus textos, erroneamente classificados como pílulas religiosas, não intentam um nirvana, um escape da opressiva existência. Talvez por isso ele seja mais identificado como um poeta do nosso tempo do que com um filósofo, um pensador sutil, um místico. Sua própria obra desdiz esses sintomas, porque não foi erigida sobre a rocha do método, da organização. Receio até em dizer que ela foi fundida na quentura febril de uma agonia que desconhecia as causas da afetação; ele tinha o sintoma, mas a cura não importava, talvez a temer o custo alto de ficar são. Mandar queimar seus escritos é a ironia final que ainda clama um significado lógico ou psicanalítico, em suma, essa não razão atormenta e fascina; eu apostaria na suprema vaidade ou como sendo mais um componente dos seus truques, para forjar a lenda.

    No ano 1900, Kafka tinha 17 anos. Até 1924 viu o mundo vertiginoso como uma quimera aflorar-se entre sua juventude e fugaz maturidade. Morto aos 41 anos, viu o advento do telefone, dos aviões, do rádio, do cinema mudo, da produção industrial em larga escala e da Primeira Guerra Mundial, que ironizou dizendo: “A Alemanha declarou guerra à Rússia; à tarde, natação”. (Diários, 02/08/14). Esse entre-século vivido por Kafka não tem paralelo na História. Quando nasceu, em 1883, cidades europeias ainda eram alumiadas com lampião de azeite ou óleo de baleia na América; ferrovias ainda eram uma novidade; poucos anos depois havia máquinas voadoras a rivalizar entre o céu e a terra, criando um entreposto admirável e promissor sobre nossas cabeças. Essas bruscas mudanças tecnológicas, o alienante progresso técnico, em curto espaço de tempo, certamente afetaram a obra de Kafka (personagens de O Castelo, de 1922, usam telefone) e contribuíram para o ceticismo e interrogação que norteia tudo o quanto de maravilhoso brota da pena deste artista-efígie.

    Porque ele sabe também manipular o jogo de aparências para conduzir o leitor ao seu labirinto mencionado no começo deste artigo, cuja entrada tem uma inscrição esmagadora e, à moda de Dante, inescapável: se entrar, não há saída. Inadvertido, o leitor aprecia o desafio na ingênua esperança de aceitar a tarefa como provocação a ser vencida e dela sai frustrado por não obter nem respostas ou mesmo perguntas; ele fica à deriva num mato que, caso tivesse um cachorro, o devoraria pela perplexidade da atmosfera penal em que fora instalado. Nesse ambiente de privação e solidão, onde não há dilemas existências em que possa ancorar-se, inexiste o Bem e o Mal; o certo e o errado tornam-se irrelevantes, o ato e a existência se entrelaçam num abraço que ri de nossas ilusões.

    Observo com alguma insegurança que tudo era estranho a Kafka: seu país, sua religião, sua família, até suas noivas com as quais jamais contraiu matrimônio. Inclusive o idioma, oxigênio de qualquer artista da palavra, lhe é estranho: ele é tcheco, mas escreve em alemão, talvez vislumbrando um alcance maior da obra que, um dia, intentou destruir? Problema difícil. Essa sensação de não pertencimento, de orfandade de identidade, parece angustiante para alguns, mas é matéria-prima para gênios. Desse substrato invisível saem todas as lutas para pertencer a alguma opção ainda por existir e, na falta dela, cria-se seu habitat particular, onde tudo é permitido desde que obedeça a uma única regra: a de opor-se a tudo aquilo que vicia e contamina a fruição da vida. Como quando ele diz a um amigo em viagem à Itália: “Só existe o mundo espiritual, o que chamamos de mundo físico é o mal do mundo espiritual”. Como sempre, não fica claro o intento algo codificado, ele só revela a inquietação do mundo dos contrários que se atraem e, como os átomos, precisam das contradições básicas para manter certa e precária unidade. Mas, embora incognoscível, revela-se uma beleza agostiniana no físico infundindo mal ao etéreo.

    Agonia tranquilizante

    No conto A Primeira Dor, Kafka apresenta um trapezista que não quer sair do trapézio. O empresário da companhia circense é obrigado a criar um veículo para transportar sua principal atração nas andanças entre as cidades. É um paradoxo que ajuda a mimetizar os tempos. O solo é acessível a todos, a criação de Kafka o nega como uma espécie de rebaixamento estrutural, não o encara como uma necessidade, mas uma repulsa. Essa enorme capacidade de sintetizar o todo usando fragmentos faz o silogismo de Kafka superar as limitações da metáfora, que é por definição presa a uma ideia, uma concepção, ao passo que nele há esse impossível com tintas de absurdo. E é justamente esse absurdo que ele se empenha em normalizar. Para ele, o surreal é corriqueiro, o fora do comum é a estranha vida burocrática que levamos quotidianamente sem gemer.

    Kafka também revoluciona a linguagem a ponto de demarcar território no horizonte de gente como Wittgenstein, que cria uma filosofia nova, baseada na linguagem e seus signos usando também Kafka como modelo. A maestria de Kafka se revela soberba nesse quesito. Ninguém lê esse contemporâneo de sábios como Oscar Wilde com detido prazer ou ânsia por relaxamento; é antes uma viagem a regiões intrincadas, submundos da alma, autarquias, repartições, penitenciárias, castelos intransponíveis, tribunais sem juízes. É o pesadelo revestido pela cereja do sonho. A linguagem é crudelíssima, cartorial, sem maneirismos ou a leveza que deve criar irritação na juventude atual e a do porvir, porque ávida por doçuras. Essa é a exata e precisa feitiçaria por ele usada para mergulhar quem o lê nesse redemoinho em que é imperioso acostumar-se com o Não; é um Não permanente incontestável, não há instâncias a recorrer, não há fuga. É uma espécie de agonia tranquilizante, já que o leitor-refém vê-se obrigado a aceitar que “a culpa [o existir] é sempre indubitável”. Ele recria, ironicamente, o mundo natural, o mundo de Sisífo, com a desvantagem de não ter o peso material para amenizar o tédio do ato repetido ad nauseam.

    A mitologia de Kafka não tem mitos, símbolos materiais, lhufas. É forjada por instâncias intangíveis e superiores, longe do alcance dos homens. A imprecisão em Kafka é mais que precisa, é guiada a laser.

    Este retrato desenhado com anfibologia não intenta “descobrir” o artista em sua plenitude, nem tem a audácia vã de explicá-lo, mas ousa lançar luz sobre a desambição embutida na obra desse rapaz quieto, pouco sociável e sobretudo brilhante. A relação turbulenta com seu pai, o contexto histórico em que viveu, o amor irrefreável que sentia por sua terceira irmã Ottla, morta em Auschwitz, provável destino dele se vivesse um pouco mais, tudo isso compõe a sua gênese liquefeita. Desse caldeirão de emoções e violências nasceu uma charada literária que transcende em muito o mundo da cultura. Ele penetra insinuante o espírito dos tempos, devassando suas afecções, diagnosticando seus vícios e cerceando o tópico salvador não porque não o tenha, mas porque seria um desperdício sanar o mundo para deixá-lo bom, porque tal distopia só serve a fanáticos de causas delirantes, que querem moldar o mundo segundo sua visão e credo. Este mundo turbulento, cruel e contraditório e, apesar de tudo isso, adorável, é o que permite a construção de seres humanos como Franz Kafka, para desnudá-lo com poesia. Num mundo perfeito Kafka seria impossível.

    * Alex Bezerra de Menezes é escritor, autor de Incandescências (2005) e Depois do Fim (2016).

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