A perspectiva é assustadora. O Brasil ultrapassou as 25 mil mortes e 400 mil infectados pelo novo coronavírus. Infelizmente, mesmo após mais de dois meses em estado de calamidade pública (desde 20 de março, data da publicação do decreto federal), vivendo na popular quarentena – ou isolamento social, ou distanciamento, ou até mesmo lockdown em certas regiões – devido à pandemia, o país se tornou o epicentro da Covid-19, conforme divulgou a Organização Mundial da Saúde (OMS), no dia 22 de maio. O Sistema Único de Saúde (SUS) colapsou em alguns estados. Mortos são, diariamente, enterrados em valas comuns.
As causas para esse quadro são diversas. Cabe apontar algumas delas. Desde o princípio, em janeiro, quando só havia casos registrados em Wuhan, na China, o governo federal acionou o modo negação, deixando o planejamento em segundo plano. Foram dezenas (e continuam…) de falas absurdas do presidente Jair Bolsonaro ("Não é isso tudo", "Gripezinha ou resfriadinho", "Brasileiro não pega nada!", "Eu não sou coveiro", "O vírus está indo embora", “É uma histeria", "Sou Messias, mas não faço milagre", "E daí, quer que eu faça o quê?”, "Todo mundo vai morrer, um dia"), ações irresponsáveis como a abortada campanha #BrasilNãoPodeParar, a saída de dois ministros da Saúde, o descompasso e a falta de diálogo com governadores, assim como a ausência de um plano estruturante nas áreas de Saúde e Economia. Um completo desastre de gestão pública.
A nossa maior chaga também está presente. Pululam casos de corrupção. Em administrações estaduais e municipais, o Ministério Público identificou aquisição superfaturada de equipamentos para o combate ao coronavírus, desvios de verbas da máquina pública para outros fins, entre outros escândalos.
Como se não bastasse, temos a insistência de uma grande parcela da população em não levar o vírus a sério (influenciadas por quem será?), promovendo aglomerações, abrindo comércio onde não é permitido e teimando em não usar máscaras de proteção. Tudo em nome de uma pretensa liberdade. Um discurso batido e cansativo. O mesmo que ouvimos quando foi aprovada a Lei Seca, que proíbe aos motoristas dirigir depois de beber álcool. O bebum se acidentava, ou era parado numa blitz, e soltava o clássico “É um direito meu! Se eu quiser beber, eu bebo”.
Somada a isso, uma fábrica fumegante de produção em massa de fake news polui o nosso ar e o deixa irrespirável. As mentiras se dissipam em grupos de WhatsApp e nas tais “mídias alternativas” (uma praga que não vem de agora). O resultado? Polarização e embates diários. Uma grande energia é gasta para desmentir factoides sem pé nem cabeça. O governo federal, é claro, não poderia ficar de fora dessa. No dia 20 de maio, o Ministério da Saúde ampliou o acesso de pacientes, nos primeiros dias de sintomas, à cloroquina, uma medicação até o momento sem nenhuma eficácia comprovada para a Covid-19. É a oficialização das fake news!
Mas o melhor, e o pior, desse cenário grotesco são os pensamentos originais de pessoas que ultrapassaram o nível da negação e atingiram o de delírio. Uma espécie de estado mental zumbi, só que com uma brecha para a, digamos assim, “criatividade” em propor soluções e/ou identificar complôs ativos durante a pandemia. Separei para vocês algumas dessas pérolas que pesquei no WhatsApp (sim, eu não saio dos grupos, sou do tipo que lê tudo):
"O brasileiro é mais resistente. Aqui vai morrer menos gente"
"Tem que liberar o isolamento no começo, para as pessoas criarem anticorpos"
"O governador está quebrando a economia para se reeleger"
"A quarentena só serviu para destruir empresas"
"Para mim, está provado que a quarentena mata mais"
"Se tu for ver, dez mil, em menos de dois meses, são poucas mortes"
"Morreram muito mais de H1N1 no Brasil e ninguém falou nada"
"Os hospitais estão vazios"
"Tem milhares de pessoas morrendo porque não vão ao hospital"
"Vão esperar morrer mais gente só porque a cloroquina não tem homologação da OMS?"
"Milhares de mortes poderiam ser evitadas se não fosse o complô da indústria farmacêutica que é contra a cloroquina, um remédio com patente brasileira"
"Obrigar as pessoas a usarem máscara é tirania"
"Se tudo fosse liberado desde o começo, quem garante que teria mais mortes?"
"Sem liberdade, estamos vivendo exatamente como viviam durante o comunismo"
“Cadê as notícias positivas? A maioria se cura ou nem pega esse coronavírus. Isso, sim, deveria ser manchete”
E tem muito mais. Como dizia a ufanista marchinha da Copa do Mundo de 1958: "Com brasileiro, não há quem possa!".
Lucas Barroso
Jornalista e escritor, autor de "Virose" (2013), "Um Silêncio Avassalador" (2016), "Um Gato Que Se Chamava Rex" (2018) e "O Tempo Já Não Importa" (2020).