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    O saque


    *Para o Especial O Mensalão e Nós


    Ela tirou o penhoar de seda antes de ir ao banheiro, pisando descalça no carpete do quarto. Na adolescência, era um de seus sonhos ter a casa toda acarpetada, para andar descalça e sentir as tramas do tapete acariciarem seu pezinho nascido para o conforto. Não mais ouvir a mãe dizer “não pegue outro resfriado”. Dinheiro para antibióticos não havia. 

    Depois do banho, como uma rainha acostumada a seu castelo, passou pela sala e nem olhou os quadros de artistas plásticos contemporâneos, comprados de um senador metido a entendedor de arte, amigo do marido.


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    Ele já tinha saído para um encontro com os aliados. Na pauta, contribuições para prefeitos, aprovação ou costura de acordo sobre uma tal reforma. Ela acordou às 9h, fez pedicure, tomou café da manhã com queijos e complexos de vitaminas, linhaça, frutas vermelhas e suco tropical. Não ia ao acupunturista, naquela quinta-feira de sol. Era pedido do marido que fosse ao banco sacar uma quantia, antes do meio-dia. Ligou para a amiga, dona de uma boutique, e avisou que passaria só no final da tarde para a prova de roupas. Com a voz baixa e em tom de reclamação, explicou a mudança de horários: “Me pediu um favor de última hora, eles sempre acham que não temos nada para fazer”.

    O último cuidado antes de descer para a garagem e entrar no modelo wagon no qual andava sempre sozinha, com vidros fechados e óculos escuros de grife, foi a ritualística passagem de cremes nas pernas, nas mãos e nos cotovelos.

    Pelo rádio do carro, enquanto checava o celular, ouviu a contragosto um fanhoso locutor trocar o nome de uma conhecida rua ao sugerir rotas de trânsito. O celular numa mão e a pequena bolsa na outra a impediam de mudar a estação ou ligar o MP3. Não conseguiu ignorar a voz, que agora noticiava a morte de um estudante baiano durante protesto contra aumento das passagens de ônibus. Deixou o celular no banco do lado e cheirou as mãos, aprovando o creme importado. Deu a partida e seguiu sozinha num carro em que caberia uma família confortavelmente.

    Agora mais sério, mas ainda fanhoso, o locutor noticiava a possibilidade de aprovação, naquele dia, de uma lei do governo do Rio de Janeiro sobre cotas para deficientes e minorias nas universidades estaduais. Ela queria ouvir uma boa música. Mas resolveu continuar ouvindo notícias. 

    Passou por vários carros pelas longas avenidas e parou no semáforo ao lado de um táxi, no qual, no banco de trás, ia um funcionário do Ministério da Agricultura. Ele lhe parecia tenso ao olhar a tela de seu notebook, em que despontavam trechos de um projeto que, segundo amigos dele comentavam, mudaria os rumos do país:

    “INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 12, DE 4 DE SETEMBRO DE 2003.
    Art. 1º Aprovar o Regulamento Técnico para Fixação dos Padrões de Identidade e Qualidade Gerais para Suco Tropical; os Padrões de Identidade e Qualidade dos Sucos Tropicais de Abacaxi, Acerola, Cajá, Caju, Goiaba, Graviola, Mamão, Manga, Mangaba, Maracujá e Pitanga; e os Padrões de Identidade e Qualidade dos Néctares de Abacaxi, Acerola, Cajá, Caju, Goiaba, Graviola, Mamão, Manga, Maracujá, Pêssego e Pitanga, constantes dos Anexos I, II e III, respectivamente, desta Instrução Normativa.” 

    Mais adiante:

    “3. COMPOSIÇÃO E REQUISITOS
    3.1. Composição
    3.1.1. O Suco Tropical deve ser obtido de fruta fresca, sã e madura, e manter as características físicas, químicas e organolépticas da fruta. 
    3.1.3. A expressão "suco pronto para beber", ou expressões semelhantes, somente poderão ser declaradas no rótulo do Suco Tropical quando adicionado de açúcar.”

    Ela notou que o semblante tenso do homem no táxi dera lugar a um leve sorriso, motivado pela satisfação dele em concluir, após a leitura, que o emprego em Brasília, garantido com o mestrado em Nutrição e a filiação a um partido da base aliada, permitia-lhe ajudar seu povo em algo fundamental como saber a composição dos sucos que consome. Ela também queria sorrir, mas estava chateada com o favor que tinha de cumprir e com a demora do semáforo. Que enfim abriu, fazendo-a retornar a atenção para o trânsito e esquecer o passageiro do táxi que já tomava outro rumo.

    Mais algumas quadras e estaria no banco. Parada agora em outro semáforo, sentiu necessidade de mais ar nos pulmões, e inspirou fundo, pensando na vida. Abriu a janela do carro e ouviu uma mulher de uns 45 anos explicando para a filha, no carro ao lado, quase colado ao seu, que naquele mesmo dia 4 de setembro, mas há muitos anos, no que hoje se chama de Segundo Reinado, tinha sido promulgada no Brasil uma lei que proibia o tráfico internacional de escravos para o país. A menina falou sem expressão: Lei Eusébio de Queirós.

    Ela fechou a janela do carro, abaixou a cabeça, respirou fundo mais uma vez e acelerou. Minutos depois, sem perceber, já estava em frente ao banco. Estacionou e entrou na agência.

    Após meia hora, voltou ao carro com os 50 mil reais, que lhe pareciam comuns. Ela estava apenas cuidando de mais um dia em sua vida.

    Mas se questionava o porquê da sensação, que a atingiu na volta para casa, de estar vivendo algo diferente, mesmo num dia em que tudo estava tão igual a todos os outros. Que dia era aquele para ela e para os outros, para o moço do táxi e para a menina que seguia com sua mãe, provavelmente com uma prova de História à vista, na escola? Concluiu que era bobagem, pois nada estava acontecendo de realmente diferente.

    E nas horas restantes daquele dia não poderia mesmo perceber nada de diferente, até cada reação se desencadear às ações dela, da menina e do moço do táxi, de todos nós.

    @rafaelfaisjorn


    Mais Especial O Mensalão e Nós
    Papo jovem - Lucas Colombo - 31/08/2012

     

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