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    Contra os clichês


    por Lucas Colombo

    Cíntia Moscovich recebeu a Continente* em sua simpática casa azul de floreiras sob as janelas, no bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre, num dia nublado de inverno. Nuvens cinzentas também pairaram sobre a vida da escritora, pouco tempo atrás. Em 2008, concluídos 30% de um livro de contos, ela recebeu diagnóstico de câncer nas amídalas, contra o qual passou por tratamento severo até 2012. Curada, terminou e lançou o trabalho que a doença interrompera: “Essa coisa brilhante que é a chuva”, ganhador do Prêmio Portugal Telecom de 2013 e bem recebido por crítica e público.

    No livro, Cíntia oferece contos que, embora convencionais na forma, prendem o leitor pela universalidade das suas tramas familiares e urbanas, envoltas por uma atmosfera que mistura melancolia e esperança. A temática judaica, uma das preferidas da autora descendente de imigrantes judeus europeus, aparece em algumas das histórias (a exemplo de “Gatos adoram peixes, mas odeiam molhar as patas”), bem como nas de outra reunião premiada de contos seus, “Arquitetura do arco-íris” (2004).

    Sua lista de obras contém ainda os romances “Duas iguais” (1998) e “Por que sou gorda, mamãe?” (2006). São também romances os dois próximos livros que publicará. Um já está pronto. “Baleia-assassina” é uma narrativa infanto-juvenil que, inicialmente criada para uma série sobre sustentabilidade da editora DSOP, será lançada pela Nós, selo novo, em 2016. O outro, adulto, ainda não finalizado, é inspirado na convivência da autora com o câncer.

    Porto-alegrense nascida em 1958, Cíntia comanda, na capital gaúcha, uma oficina anticlichês de escrita e mantém uma coluna no jornal Zero Hora, na qual, por vezes, dispara corajosa contra a tropa do politicamente correto. Nesta entrevista, fala dessas atividades, dos novos projetos, questões polêmicas do meio literário – patotas, patrulha ideológica – e como o humor a ajudou a enfrentar a doença séria. Também não se furta a comentar outro período nebuloso, este ainda sem dia de sol à frente: o que o Brasil atravessa.


    1. Como foi escrever para adolescentes? O americano John Green, do best-seller “A culpa é das estrelas”, disse que escreve da perspectiva de adulto, não tenta “se passar” por adolescente, para não soar caricato.

    Cíntia – Já tive uma experiência anterior, com um livro de encomenda chamado “Mais ou menos normal”. Casualmente, essa época em que o estava fazendo coincidiu com o início dos trabalhos no roteiro de “Antônia” (extinta série da Globo), com o Jorge Furtado, Cláudia Tajes, Marcelo Pires e Pedro Furtado. E trabalhar com o Jorge é ter aula. Ele falava da importância da ação, da ‘escaleta’ para roteiro, que nada mais é do que a decupagem das ações que vão acontecer. Pensei: “putisgrila, taí o negócio”. Fiz uma ‘escaleta’ do livro. Feito isso, mandei ver. Se eu tinha um tempo livre, pensava: “que cena vou escrever hoje?” Porque se torna um livro de cenas, tu passas a escrever cenas. O tempo passa na medida em que se vira a página. E ação na narrativa não tinha sido, até então, meu forte. Sempre tive uma narrativa mais de inação, reflexiva, paradona mesmo. Depois que me ocorreu fazer ‘escaleta’, assumi a narrativa sem me preocupar se ia narrar do ponto de vista adulto ou adolescente, porque não gostaria de fazer essa discriminação. Mas sabia que tinha de ter cuidado com a linguagem. Afinal, a linguagem que se usa para um adulto não é a que se usa para outro público. Isso não significa que é bom ou ruim, mas que é preciso agilizar a leitura. O approach para escrever tem que ser menos rebuscado em termos de linguagem e mais ativo em termos de ação. Todos têm um lado mais brincalhão que se impõe quando se escreve uma história dessas. Não cheguei mesmo a pensar se era adulto ou adolescente narrando, foi algo que brotou espontaneamente. Mas era o mesmo narrador que tava escrevendo o “Antônia”, por exemplo, naquele mesmo período.

    2. Gosta de algum autor de infanto-juvenil? Vários fizeram alta literatura para “consumo” adolescente, como o Salinger.


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    Cíntia – Claro, gosto do “Apanhador no campo de centeio”. Monteiro Lobato também. Sou alucinada por “Vinte mil léguas submarinas” (Julio Verne). E são livros em que não se nota quem tá narrando, é apenas um autor contando. Não se facilita nada. Só no sentido de não usar linguagem de salto alto – uma coisa que estou evitando fazer, em qualquer narrativa – e tratando de pôr mais ação. Tem que ter coisas acontecendo.

    3. Ao criar uma história com sustentabilidade de tema de fundo, procurou evitar certo romantismo “verde”?

    Cíntia – (risos). Justamente. O medo que eu tinha, quando aceitei escrever o livro, foi de virar “ecochata”. Aí criei a história de um guri que tem uma mãe assim, eco-xiita, dessas que recolhem lixo... E ele tem ojeriza à história da mãe. O pai é engenheiro, constrói prédios, derruba árvores. Eles têm uma discussão à mesa, o pai diz: “mas tem que derrubar árvore, fazer o quê? Eu tive que derrubar um ipê para construir nossa sala de jantar.” A civilização é uma sinuca de bico, né? Pus no livro essas discussões que me tiram do enfoque mais radical, panfletário, porque tenho horror a isso. Mas também, como a série era sobre sustentabilidade, e eu tinha que dar uma força para o pessoal “verde”, não pude desprezar a questão.

    4. Já terminou o romance sobre a convivência com o câncer?

    Cíntia – Não encontrei o tom ainda, mas estou produzindo, penso nele o tempo todo. O problema é que, assim como evitei o panfleto no “Baleia-assassina”, quero evitar nesse. Quando se fala de doença e morte, a tendência a se lastimar, se deprimir e deprimir o leitor, é grande. Mas não quero que seja sofrido para ler – porque será sofrido para eu escrever. Quero tratar do assunto com humor. Durante o tratamento, houve episódios ridículos, e talvez tenha sido esse lado ridículo do tratamento que me fez vencê-lo.

    5. Aliás, um elemento presente na sua obra é o humor judaico, esse mais irônico, autodepreciativo. Ele a ajudou a enfrentar o câncer, como historicamente ajudou o povo judeu a enfrentar adversidades?

    Cíntia – Sempre tive esse lado autodepreciativo, sem saber que era o tal humor judaico (risos). Fui criada nesse ambiente. Mas, quando fiquei doente, pensei: não vou rir dessa merda. Câncer de amídalas é muito singular, geralmente dá em homens que fumam e bebem. Eu tinha uma “bola” aqui no pescoço, que todo mundo confundia com uma íngua. O exame dizia que poderia ser benigno ou um carcinoma. Olhei aquilo e fiz: “hmmm...”. Meu marido, supercrédulo, falou: “não, imagina, vai ser benigno!”. Liguei para o meu médico, li pra ele, e ele disse: “se fosse benigno, nós teríamos descoberto quando tu eras criança. Fica tranquila, Cíntia, eu vou ficar contigo até o fim” (!). Lembro que desliguei o telefone e parecia que o mundo, assim... (pausa). Bom, marcamos uma cirurgia logo, com um cirurgião de cabeça e pescoço – e aí começou a parte ridícula. O consultório do cirurgião é megaequipado, com monitores por todo canto. Ele abriu o laudo e falou: “nós temos que correr, tu estás com metástase”. Assim, de cara. Sentei na cadeira, o médico pôs aquela camerazinha (endoscópio), e a imagem aparecia nos monitores. Meu marido tava sentado num sofá, perto da mesa de consulta. O médico viu que era algo na minha amídala, precisava extrair um pedaço para examinar. Como não podíamos demorar muito, baixar hospital, topei fazer “no seco”. Me deram xilocaína e começaram a cortar.

    Então ouvi passinhos, barulhinho de porta abrindo, um baque e mulheres gritando. Meu marido tinha desmaiado! Falei pro médico: “meu marido é cardiopata, ele se fudeu, tá aterrorizado”. Saímos eu e ele, com minha amídala numa pinça, e o vimos no chão. O médico disse que era só um susto. Mas meu marido quebrou a patela ao cair, teve que passar dias imobilizado, uma solução conservadora, porque ele não podia ser operado. Voltei com o médico, fomos combinar minha cirurgia, e ele me falou: “não traz mais teu marido aqui. Tu precisas de uma pessoa forte ao teu lado”. “Mas, doutor, é meu marido!” (risos). “Não, é melhor que ele não venha”. Meu tratamento começou com essa cena de comédia pastelão. Houve episódios dramáticos, claro, mas esse do desmaio é sensacional. Jamais inventaria uma história tão maluca. Os sons, o médico me xingando... (risos). E é esse lado que quero abordar no livro.

    6. Em “Essa coisa...”, você pôs citações de Woody Allen e Moacyr Scliar. A leitura de autores judeus é constante?

    Cíntia – A leitura de autores (risos). Citei o Scliar porque ele tinha falecido recentemente, e fiquei muito sentida. Sentiria se não fosse judeu também. Sempre o quis bem. Depois que ele morreu, eu andava com “O centauro no jardim” pra cima e pra baixo. A frase do Woody Allen eu acho maravilhosa. Como o livro foi publicado depois do meu câncer, não existia frase que definisse mais o momento que eu vivia (“A vida não imita a arte, imita programas de TV ruins”).

    7. De que país da Europa veio sua família?

    Cíntia – Sou da segunda geração de imigrantes judeus da região da Bessarábia, atual Moldávia. Abrangia a atual Moldávia, Romênia, Polônia e Rússia. Naquela época, as fronteiras eram movediças, tudo pertencia ao império russo. É a mesma região de onde vieram os pais do Scliar, por exemplo. Grande parte dos judeus aqui do Rio Grande do Sul veio de lá.

    8. Lembra a primeira vez em que conversou com o Scliar?

    Cíntia – “A” primeira vez, não... A gente pertence a uma comunidade meio pequena e frequenta clubes da comunidade. Eu cresci vendo o Scliar, entendeu? Não conversando com ele, mas era natural vê-lo no clube. Ninguém chegava muito perto, porque o cara tava sempre lendo. Lembro que, uma vez, eu tava na fila do bar, atulhada de judeus querendo tomar uma bebida num dia de verão, e falei pro Scliar: “estou lendo o ‘Cenas da vida minúscula’”. Ele: “ah, que bom”. O que ele ia dizer, né? (risos). Era assim, nada excepcional: no domingo eu ia ao clube e via o Scliar lendo.

    9. O conto “Bonita como a lua”, de “Arquitetura do arco-íris”, é a história da sua infância? A menininha judia que fazia aula de piano, balé, queria escrever...

    Cíntia – Em grande medida, é parecida com minha história. Histórias com personagem infantil são cheias de autorreferência. Cheias, cheias. A minha infância não foi tão perfeitinha quanto. Os pais dela são superqueridos, os meus eram mais “de verdade”, com um pouco mais de crueldade, mas isso é normal.

    10. Num conto do “Essa coisa...”, você escreve que o personagem está “na subida da lomba”. Seu editor não pediu para trocar esses termos gaúchos?

    Cíntia – Sim... É uma encheção de saco... O editor não pede nada, os revisores que implicam. E a primeira implicância que eles tiveram foi com uma conversa de dois personagens em que um deles diz: “vai à cozinha e me alcança um copo d’água”. Eles não entendiam o “alcança”. Eu dizia: “mas tá tão claro, como não entendem?”. Às vezes, quando sentia que ia dificultar a leitura, eu optava por simplificar. Mas sempre lembro uma passagem muito divertida que nos contou o Sérgio Faraco. Ele tinha lançado o “Noite de matar um homem”, que ganhou prêmio da ABL. O livro tem duas partes: uma de contos urbanos e uma de regionais, carregada de termos locais. Ele foi receber o prêmio na Academia, tinha uma baita fila para cumprimentá-lo, e chegou um “imortal” e disse: “gostei muito do seu livro, sobremaneira da primeira parte. Para a segunda, faltou um glossário”. E o Faraco: “mas, para a primeira, o Aurélio já bastava, né?”... O acadêmico era o Celso Furtado. Depois que ele morreu, o Faraco nos contou. O cara se ofendeu, saiu... O Faraco o chamou de imbecil, na verdade, né... Então, sempre pensei: não vou traduzir coisas. Exceto quando posso substituir por outra coisa sem perder a força da expressão. Mas editor não se mete muito, não.

    11. Você nunca escreveu poesia?

    Cíntia – Comecei escrevendo. Muito pequena, já lia Pessoa, Bandeira, Vinicius, Drummond. Era boa leitora de poesia e sempre quis escrever. Mas tinha a ideia e, quando ia por no papel, parecia que a ideia se esfacelava. Escrevia porcaria. Tinha noção de que o que eu lia era bom e o que escrevia, não. E não conseguia ir adiante.

    12. Pretende retomar, um dia?

    Cíntia – Nããão! Só retomei para ganhar dinheiro. Uma fábrica de não-sei-o-quê pediu para imprimir poemas em papel comestível. Até fiz. Mas sei que aquilo tem que ir para a privada, mesmo... É muito ruim. Só quando fui para a prosa, com 35 anos, consegui fazer algo que, mais ou menos, me agradasse. Sou neurótica. Não tenho condescendência comigo mesma.

    13. E com os outros? Com quem usa clichês, por exemplo. Você ministra oficina contra lugares-comuns. Há um que nunca morre?

    Cíntia – Não só um. Há duas coisas infinitas e eternas: Deus e o clichê. Não existe um que eu possa te dizer...

    14. Um de hoje, então. O “só que não”, por exemplo, é irritante.

    Cíntia – Ah, pois é. Babaquice. Tem pessoas que falam por clichê. Se tá chovendo, alguém logo diz: “tá chovendo canivete”... As pessoas que se habilitam a fazer a oficina chegam carregadas de clichês. É algo inescapável, pois é usado para facilitar a comunicação diária. São fórmulas prontas que ajudam. Propaganda usa clichê, narração de futebol usa, texto de novela usa – até porque é falado, é esperado que se tenha clichê, para todo o público entender. Mas literatura é outra coisa. O primeiro exercício da oficina é de “desobsessão” – peguei o título emprestado do espiritismo, aquilo de fazer que o espírito “te deixe”. Eles escrevem um texto com todos os clichês possíveis, e a partir disso nunca mais vão usar.

    15. Pergunta de um milhão de dólares: por que ficção brasileira, hoje, raramente entra na lista de mais vendidos? Fernanda Torres entrou, mas ela, antes de ser escritora, é atriz.

    Cíntia – Felizmente, porque o “Fim” é maravilhoso. Ela é muito inteligente. Eventualmente, alguém entra. A Letícia Wierzchowski, com “A casa das sete mulheres”, teve uma venda espetacular. Mas por que raramente entra? Vamos usar um clichê: “santo de casa não faz milagre” (risos). Ninguém aqui faz o que o John Green faz, por exemplo. Lidar com um tema como o câncer com simplicidade, sem pretensão. Nós, e me incluo nisso com tranquilidade, ainda somos pretensiosos. E literatura mais elaborada é vista pelas pessoas como algo rançoso, do qual elas se afastam. Só leitores vocacionados se aventuram em livro de autor brasileiro.

    16. Você tem explicação para o fenômeno “Cinquenta tons de cinza”? Leu?

    Cíntia – Cheguei a ler. Achei jardim de infância... Foi sucesso porque tudo que diz respeito a sexo cola bem. Mas é muito difícil descrever sexo. Dificilmente se foge do “membro túrgido”, “caverna úmida”, “botão do prazer”... e naquela porcaria tem tudo isso. Nenhuma cena bonita, erótica... Só aquele sadomasoquismo. A Tiazinha era mais encantadora.

    17. E os livros de colorir, que tal?

    Cíntia – Eu gosto, tenho um. Acho legal, nada contra. As pessoas querem se divertir pintando. Por que ser contra diversão? Elas podem ler Machado e colorir livro. Não vejo antagonismo. Não é por ter livro de colorir que as pessoas vão parar de ler. Isso é maluquice. Também diziam que a TV ia acabar com a leitura...

    18. Um pedido que faço a todo escritor que entrevisto: cite um autor da turma dos “monstros sagrados” que você não aprecia.

    Cíntia – James Joyce. “Dublinenses” eu adoro, mas “Finnegans wake” ou “Ulysses” me dão dor de barriga. Li “Ulysses” porque fui obrigada, no mestrado. Fora disso, não me pega.

    19. Quando você escreve sobre outros escritores, é em tom positivo. Por que você, como a maioria dos autores brasileiros, não costuma criticar obras de colegas conterrâneos?

    Cíntia – Porque obras ruins o tempo consome. Não preciso colaborar para que desapareçam. Se um livro não presta, não preciso demoli-lo. Naturalmente o tempo vai fazer com que ele se perca.

    20. Mas concorda que há espírito de patota no meio literário brasileiro?

    Cíntia – Concordo... Não sei quem é a patota, mas concordo. E não é diferente do meio dos advogados, médicos, jornalistas. As pessoas procuram seus iguais porque têm inquietação semelhante. “Ah, mas tu proteges fulano de tal...”. Como assim? Protejo a Cláudia Tajes? Ela me protege, então. Nem tudo é patota, “galera”... Vejo virtudes no meu colega e falo delas. Quero que as pessoas também leiam. Não estou fazendo favor a ninguém. Me recuso a bater numa obra e também me recuso a elogiar porcaria, pois isso depõe contra mim. Se um amigo publica um livro ruim, prefiro não tocar no assunto. (pausa). Que idade tu tens?

    21. Trinta.

    Cíntia – É que quero me lembrar... Lá no início dos anos 90, nós tínhamos na Zero Hora (Cíntia trabalhou no jornal) três jornalistas que eu e o (Luiz Antônio de) Assis Brasil chamávamos de “As Três Graças”: Eduardo Sterzi, Jerônimo Teixeira e Leandro Sarmatz. Três “gênios do mal”, vamos dizer assim. O Jerônimo tá na Veja, o Sterzi é professor da Unicamp e o Leandro é editor da Cosac&Naify. Eles, em separado, são encantadores. Mas as molecagens que esses guris fizeram na Zero Hora... A Maria Carpi, mãe do Fabricio, ia lançar livro, “Os cantares da semente”. Escreveram: “Maria Carpi lança livro que reafirma sua condição de carpideira”. Era nesse nível. Lembro que o (escritor) Celso Gutfreind usou uma contracapa do caderno Cultura para baixar malho num livro de poemas, numa pegada muito subjetiva, sem justificativa técnica, muito impressionista, tipo “ah, não gostei”. Tanto que, quando lancei meu primeiro livro (“O reino das cebolas, 1996), entrei em pânico. Morria de medo. Acho que quem me resenhou, em primeiro, foi o Sterzi. Ele me entrevistou, e eu passei a noite assombrada com o que viria. De manhã, chegou o jornal, meu marido foi pegar e começou a ler, quieto. Perguntei: “o que é? Fala!”. E ele tava mudo porque foi superbom (risos). Mas era assim, todo mundo tinha medo! A gente se reunia, na oficina do Assis, para refletir sobre isso: o que leva alguém a gastar energia para malhar um trabalho que sozinho vai cair. Eu prefiro não falar. Mesmo com um Paulo Coelho da vida, sempre optei, no jornal, em só dar a notícia, e o leitor que, se quiser, vá atrás e forme o juízo dele. Nunca me arvorei a dar juízo de valor em matéria jornalística. A não ser, claro, quando tu tens um texto bom, em que tens como justificar a opinião, aí tu fazes. Mas, se o livro é ruim, sugira que o leitor, se tiver interesse, vá ler e formar o juízo dele.

    22. Arnaldo Jabor declarou que adorou virar cronista, nos anos 90, pois passou a se “sentir útil”: influenciava debates mais do que quando era só cineasta. Colunas suas já geraram controvérsia. O conteúdo das reações dos leitores, tão rápidas nestes tempos de internet, a fez se sentir útil ou inútil?

    Cíntia – Na maior parte das vezes, muito útil. No jornal, quando posso incomodar, ah, eu incomodo. No sentido de querer fazer pensar. Pois estou nos achando muito “manada”. As pessoas não têm opinião própria, não sabem o que estão falando, não pesquisam, não se inquietam por porra nenhuma.

    23. Em 2014, você escreveu que o conflito Israel-Gaza estava servindo como desculpa para antissemitismo. Neste ano, criticou a atitude da parte da militância negra que quer conquistar direitos no grito. Já se sentiu discriminada no meio literário brasileiro, majoritariamente crítico às ações de Israel e pró-cotas raciais?

    Cíntia – Nunca. Uma vez, no entanto, num Portugal Telecom, presenciei algo não diretamente contra mim. Não vou dizer os nomes porque são pessoas conhecidas no meio. O livro em questão era um de poemas do Nelson Ascher, grande poeta, grande pensador, e judeu. Eu era a única judia do grupo. Mas o pessoal da Unicamp e da USP... Meu amigo, é troço de maluco. Muito inflexíveis. Pusemos em votação se o livro entraria na categoria Poesia. E a senhora da USP disse: “não posso votar nele porque ele é contra os palestinos, é pró-Israel”. E a da Unicamp: “ah, não posso votar, o cara tem uma posição muito antagônica ao povo palestino”. E eu: “peraí: estamos avaliando obras, o cara tem a posição que quiser, não se pode usar isso como parâmetro literário, não pertence à discussão”. Aí acabou. Ninguém mais falou sobre isso. Não sei se evitam falar perto de mim, pois eu vou pra cima, ou se realmente respeitam. Porque existem muitos autores judeus respeitados. Então, talvez os caras pararam de encher o saco, mesmo. Mas todos os autores judeus que eu conheço têm posição em prol do estado de Israel.

    24. A poeta Adélia Prado disse, num programa Roda Viva, que os artistas/escritores estão omissos diante da situação política brasileira, deveriam criticar mais a corrupção. Estão?

    Cíntia – Não creio. O escritor tem compromisso com o tempo dele, mas as pessoas confundem: acham que ele tem que ser um generalista, entender de tudo, até política. Não creio que escritores tenham de sair dando palpite, defender ou atacar a Dilma. Todos, como cidadãos, têm um papel no tecido social, inclusive como formadores de opinião. Estamos omissos não como escritores, mas como povo, como nação.

    25. Então, vou perguntar: o que uma autora premiada acha do governo da presidenta da república?

    Cíntia – Presidente, né? “Presidenta” é ridículo. Com todo o respeito pela primeira mandatária do país, pois o cargo merece respeito, ela foi eleita democraticamente, sem, acredito, nenhuma falcatrua. Mas o que está acontecendo é um desserviço para a democracia e para o país. E é desde o precursor, Lula, que frustrou os sonhos de milhões de brasileiros que esperavam que o PT lutasse contra tudo-aquilo-que-estava-aí, moralizasse e fizesse o que, nesse caso, fez mesmo: melhorar a vida da população miserável. Agora, além disso, fazer exatamente o que eles malhavam antes é um absurdo, uma vergonha. E acho mais: a “presidenta” deveria se preservar. Por ela ter tido vínculo aqui com o estado, ouço depoimentos de pessoas que a conheceram. Elas dizem que a Dilma sempre foi idônea, de boa índole. Lá em Brasília, se meteu com a gentalha. Queiramos ou não, Brasília só tem gentalha! É difícil apontar um político que não seja falcatrua. Nenhum me inspira confiança – sinto muito dizer isso, pode até ser preconceito. E a Dilma se meteu nesse troço. Pra mim, é flagrante que ela foi manipulada pelo Lula. A Dilma não tem capacidade de liderar. Ela não sabe falar em público! Saúda a mandioca, diz que não tem meta mas vai dobrar a meta... O que é isso? Acho sofrível, lastimável.

    26. Os adolescentes que lerem seu livro novo serão a primeira geração em 20 anos a viver uma crise?

    Cíntia – Não tinha me dado conta disso!... A crise que minha geração viveu, no fim da ditadura, foi mais punk que a de agora, mas resultou em coisa boa: todo mundo parava e refletia acerca da realidade. Quem sabe essa crise não sirva para um amadurecimento da democracia e das pessoas, para uma valorização real do conhecimento, da cultura... Tomara.

    * Entrevista originalmente publicada na edição de novembro da revista Continente Multicultural. Esta é a versão na íntegra. 

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