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    Poemas, sachês e camisinhas


    por Lucas Colombo, Leandro Schallenberger e Flávio Aguilar

    Onde é mesmo a rua Doutor Timóteo, no bairro Moinhos de Vento? A entrevista com o Fabrício Carpinejar seria feita, inicialmente, em um espaço cultural da Cidade Baixa, mas o poeta, cronista e professor ligou horas antes pedindo que fosse transferida para um café de lá. Perto da 24 de Outubro... ok. Vamos ao carro. Algumas voltas pelo Moinhos e um pouco de irritação depois, finalmente encontramos a rua e o café. O entrevistado chega logo após, exibindo suas já características unhas pintadas e portando óculos de lentes vermelhas. Olás, boa noites, e aís. Querem pedir algo? Sim, expressos para LucasLeandro e Carpinejar e chá para Flávio, nosso colunista internacional de volta ao país do Serra e da Dilma. Talvez o pedido seja reflexo do período na Inglaterra. Mas, certamente, o comentário espirituoso que ele fez, comparando os envelopes dos sachês para infusão com embalagens de camisinha, instigou nossa fonte. Tanto que o autor de “Cinco Marias”, “Meu Filho, Minha Filha”, “Canalha!” e outros onze livros usou-o como mote para um aforismo, criado durante a entrevista, mesmo.

    Aclamado autor, by the way. Fabro, como ele assina os e-mails, coleciona muitos elogios da crítica e prêmios literários. A Academia Brasileira de Letras, por exemplo, concedeu-lhe o prêmio Olavo Bilac, em 2003, por “Biografia de uma Árvore”; a União Brasileira de Escritores, o Cecília Meirelles, em 2002, por “Terceira Sede”; a Câmara Brasileira do Livro, o Jabuti 2009, na categoria Contos e Crônicas, para “Canalha!”. Millôr Fernandes já lhe escreveu uma apresentação, Daniel Piza recomendou que “carpinejemos”, Luis Antonio Giron chamou-o “sábio”. Carlos Heitor Cony e Ignácio de Loyola Brandão também gostam dele. Vamos ouvi-lo, então. Nesta entrevista, Carpinejar trata, é claro, de poesia, de seu “jeitão”, percebido como “estratégia de marketing” por muitos (tá bom...), do medo que escritores brasileiros têm de criticar os colegas, de bairrismo gaúcho e do twitter, que deu origem a seu último livro, lançado em 2009 e batizado com seu próprio endereço online: “www.twitter.com/carpinejar”. As páginas trazem mais de 400 frases que ele postou no microblog, qual “Eu perdôo as mentiras. O que não desculpo é a distorção”.

    A conversa, de quase uma hora de duração, foi boa. Carpinejar falou e riu, rimos, bastante. Só demorou para responder à “ótima pergunta” (by Leandro) do Lucas, sobre que poeta realmente não lhe faz a cabeça. A resposta a tal questão, o aforismo sachê-camisinha e as outras conversas todas, você lê a seguir. (E, antes que alguém indague, lá vai: dessa vez, Carpinejar tinha a palavra “mau” talhada no cabelo).

    Lucas – Carpinejar, já ouvi pessoas dizendo que o seu ‘jeitão’ não condiz com o de um poeta, um homem das palavras, e que muito dele seria “estratégia de marketing”, uma tentativa de “aparecer” – isso, aliás, é coisa de brasileiro: acusar quem faz algo inusitado de “querer aparecer”... Como você encara essas pessoas que ainda veem poetas e escritores sob a ótica do estereótipo, de um sujeito recluso, sorumbático, introspectivo? E o que responde a quem te chama de ‘marqueteiro’?


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    Carpinejar – Bem, acho que há poetas que realmente precisam desaparecer... de vergonha (risos). Eu tenho orgulho do que faço. Compreendo o que tu dizes: de certa forma, nós culpamos o marketing, como se ele não tivesse espírito, conteúdo... A gente usa “marqueteiro” pra ofender. E, na verdade, pode ser vaidade, pode ser confiança no trabalho, vontade de dialogar, de provocar. Não sei se entendem que um homem de palavras seria o equivalente a um “estancieiro”, um latifundiário... Não faço esse perfil, mesmo. Sou urbano, gosto de moda, nasci feio – ou seja, nasci escandaloso. Tenho todo o direito de ser irreverente. O feio é um irreverente natural.

    Lucas – E a quem te chama de marqueteiro, você, então, responde que é confiança no trabalho?

    Carpinejar – Ah... Assim como a gente chama de “publicitário” quando quer ofender alguém, chamam de marqueteiro. Coitados dos publicitários (risos)... Não é assim. Acho que é inveja. Uma pessoa que está travada, recalcada. Sempre tu criticas o outro como uma espécie de defesa. Algo está te ameaçando.

    Lucas – Você também publica muito. Mantém três blogs (esteeste e este), colabora com jornais e revistas, lança livros de poesia já com alguma frequência. Isso igualmente vai de encontro às convicções de muita gente, já que a ideia que se tem é: um poeta deve “produzir muito, mas publicar pouco”...

    Carpinejar – Rá! É simples: basta mentir, como muitos fazem, e dizer “meu livro demorou dez anos para ser feito”. Só assim pensam que tu és sério. Tu podes ter feito o livro em dez meses, mas tu falas que levou dez anos, e aí és levado a sério... Temos que destruir esses preconceitos, esses maniqueísmos tolos. Dostoiévski escrevia sob a pressão das dívidas! Nada melhor do que uma dívida para servir de musa inspiradora. Quem tem dívida, é realmente produtivo. Eu tenho muitas. Minha editora é meu SPC. Não há problema algum nisso. Precisamos desconfiar dessas críticas convencionais, pré-fabricadas: “marqueteiro”, “publicitário”, “escreve muito”...

    Lucas – Estou te perguntando isso justamente para jogarmos luz sobre esses clichês...

    Carpinejar – Uma crítica contundente seria: tu escreves muito e mal. Ok. Mas falar “tu escreves muito” não é crítica. Tem que dizer se o que tu escreves é bom ou ruim. Aí funciona.

    Flávio – Para continuar nessa discussão do “produzir e publicar muito”: você utiliza bastante o twitter, uma plataforma calcada na espontaneidade, em que o usuário pensa em algo, posta e logo a mensagem é consumida. Como fica a questão do rigor na escrita? Você pensa muito antes de twittar? Já se arrependeu de algum comentário publicado, quis voltar atrás?

    Carpinejar – Não, não costumo voltar atrás. Só se tem algum erro, algum lapso. Muitas vezes me atrapalho teclando no celular e posto uma mensagem pela metade...(risos). Mas o twitter tem uma violência estética. É como um pôquer: por causa de uma frase, tu podes perder tudo o que acumulaste. Uma frase errada, e tu podes ser destruído. Tu te expões ali, tentas ser, de certa forma, explosivo, aforístico, a todo momento. Isso é muito excitante. Tu podes mandar uma grande frase, mas também podes postar uma besteira e, como diz o Cardoso, perder mais seguidores do que a Igreja Católica (risos gerais). Acho que é isso que me faz twittar com tanta intensidade.

    Lucas – E o que te fez aderir ao twitter? Aonde você queria chegar com essa ferramenta?

    Carpinejar – Aderi simplesmente porque havia um fake...(risos). Criado pela minha namorada e por um então amigo. E o fake fazia sucesso! Aí pensei: vai que o fake tenha mais sucesso que o original... Porque isso acontece, né? Então, foi uma questão de juízo... Mas eu assumi e gostei muito.

    Leandro – Ainda bem que o fake era uma pessoa conhecida...

    Carpinejar – Não: pior ainda!... (risos gerais). Mas a concisão do twitter é ótima para a poesia. Já estou acostumado. Twitto há muito tempo, antes mesmo do surgimento dele. É um exercício de economizar, de usar a simplicidade. Isso é muito bom: não ficar usando palavras cavernosas, afetadas, herméticas. Tu ficas coloquial. Autêntico e coloquial.

    Lucas – Você disse numa entrevista que nunca tinha produzido aforismos até entrar no twitter. Mas os versos dos seus poemas se aproximam muito do aforismo. É uma das características da sua poesia que mais gosto. Será que só agora você descobriu esse “talento”, digamos assim?

    Carpinejar – Eu nunca tinha feito aforismos separadamente, né? Mas acho que só agora, sim. Nas crônicas eu usava muito a frase. Gosto muito da tradição de ‘frase’ da nossa crônica: Rubem Braga, Nelson Rodrigues, Luis Fernando Verissimo. Eles apreciam aquela frase desconcertante, que é herança do humor, do Barão de Itararé e outros. E eu me descobri nessa área de “pílulas” mesmo, de drágea lírica, algo que eu não fazia. Porque eu sempre fazia um poema num contexto. Ou seja, a frase está ali para sustentar uma respiração. No aforismo, não: tenho que apenas dar a martelada e desaparecer. Tem que ser cortante.

    Lucas – O aforismo tem essa tendência de ir contra o senso comum, o que é ótimo.

    Carpinejar – Tem. O poema vai de encontro ao senso comum, assim como a crônica. Mas um aforismo tu não precisas explicar. Se tu explicas muito, se a tua frase tá longa, próxima a 140 caracteres, é porque algo tá errado... E o aforismo tem muito de improviso. É, de repente, falar: “adoro senhoras que escolhem um chá como jovens escolhem a camisinha”. Sabe? É justamente isso. Na medida em que tu (dirigindo-se a Flávio) olhas o sachê e o comparas a uma camisinha, pronto. Foi uma observação tua. Tu que fizeste a comparação entre o sachê e a camisinha, uma comparação poética. Mas não pensaste em twittar isso.

    Lucas – Mas ele vai twittar...(risos)

    Leandro – Mudando de assunto: num país onde ainda se precisa desenvolver o gosto pela leitura e onde a educação não é prioridade para os governantes, é possível incentivar e conquistar novos leitores por meio da poesia? É clichê essa pergunta, mas vou fazê-la: a poesia pode melhorar nossa sociedade?

    Carpinejar – Acredito que pode. Principalmente se incentivarmos a brincadeira da linguagem. Porque o poeta tem essa ludicidade, ele está jogando, fazendo um quebra-cabeça. E criança adora suspense, mistério, aquilo que ela tem que descobrir. Nós facilitamos demais o trabalho dela, somos didáticos demais. Pensamos que a criança não vai entender, e acaba de certa forma usando-a para se emburrecer... É o mesmo de quando a gente fala com um bebê e usa aquela voz infantilizada: “ai, que lindinho!...” É um pouco disso. Se tratássemos poesia com naturalidade, mas principalmente começássemos a escrever poesia na escola – porque isso não ocorre –, seria diferente. Passei todo meu Primeiro Grau sem fazer um único poema, só escrevia redação. Estudava poesia, caíam na prova poemas da Cecilia Meirelles, do Drummond, e eu tinha que interpretar. Mas eu nunca tinha ousado fazer um verso. Tinha que entender como funciona um soneto, um verso livre, outras formas... Mas nunca havia produzido um. E soneto é muito divertido!...

    Leandro – E faltam bons professores também, que estimulem isso, não é?

    Carpinejar – Faltam. E a gente ainda lida essa questão com conservadorismo. Tu podes ter gosto por outras formas, pela trova gaúcha, pelo repente... Hoje a vanguarda não é ser moderno. Moderno é outra coisa. Moderno conversa com a tradição. Sempre.

    Leandro – Quando falamos de poesia gaúcha, a lembrança do Mário Quintana é inevitável. Mas dizem que ele não foi reconhecido suficientemente no Brasil, talvez por morar aqui no RS. Isso já não acontece com você. Será que faltou algo para o Quintana?

    Carpinejar – Não faltou, não. Essa história do Quintana contribui para a paranoia do gaúcho. Falamos isso para sugerir que tivemos “o grande poeta brasileiro não-aceito”. Como se fosse um Getúlio Vargas, que merecia ganhar a eleição e não ganhou.

    Lucas – Aí deu um golpe. (risos gerais)

    Carpinejar – Pois é. Mas com isso sobre o Quintana parece que nós é que recebemos um golpe... (risos). Se formos analisar, enfim, veremos que Manuel Bandeira e Drummond são maiores que o Quintana. João Cabral também. Cecília também. O Quintana é um grande poeta, mas se quisermos apontar um poeta brasileiro, uma expressão brasileira, não será ele. Apesar de ele ser o poeta mais popular. Em qualquer concurso de poesia, o Quintana ganharia Miss Simpatia.

    Lucas – Sempre acreditei que ele não mereceria mais do que isso...(risos)

    Carpinejar – Sabe qual é a maior lacuna da poesia do Quintana? A figura feminina. Isso faria uma grande diferença. Não há figura feminina no trabalho dele. O erotismo pesa muito na consagração. E ele só tem um ou dois poemas falando da nudez feminina. Tem um em que ele fala dos seios como montanhas, e outro que, mais ou menos, diz: “gosto tanto de ti que tenho quebranto pelo teu marido” (“Senhora, eu vos amo tanto / Que até por vosso marido / Me dá um certo quebranto.”). É um poema meio homo, né? Na verdade, ele tá desejando o marido, não a mulher... (risos). Mas erotismo é importante. O Drummond foi muito erótico, a Cecília também...

    Lucas – E você nasceu e desenvolveu sua carreira aqui no estado, mas não limita suas temáticas ao RS, nem faz questão de ser lembrado como “escritor gaúcho”, como muitos fazem. O gaúcho pode ser cruel com quem não compartilha do seu ‘espírito’? E como você lida com o problema do bairrismo, tão forte em nossa sociedade?

    Carpinejar – (pausa). Eu amo essa terra. Amo a luz daqui. A distribuição do espaço, o fato de Porto Alegre ser uma cidade em que tu podes andar, e te perder. Muito diferente de Brasília, por exemplo, e do Rio, em que tu sempre desembocas na praia ou numa favela... Aqui a gente se perde, mas uma perdição doméstica. A gente se perde mas não fica acuado. Sabemos que há uma saída. Isso dificilmente tu encontras em outra cidade. Em outro lugar, tu te perdes e entra em pânico. Aqui, não. Mas qual era a questão, mesmo?

    Lucas – O bairrismo. Como você lida com ele.

    Carpinejar – Bom, do jeito que eu me visto, eu jamais entraria num CTG (Centro de Tradições Gaúchas), né? Não iam deixar.

    Leandro – E se entrasse, não sairia...(risos gerais)

    Carpinejar – Mas sei lá. Tenho defendido a tese de que os poetas paulistas, como o Fabrício Corsaletti, estão agora conhecendo o bairrismo também. Aquele gosto de viver em São Paulo, que não havia. Só existia aquela perspectiva do futuro, de fazer um trabalho para o futuro. Agora, de certa forma, eles estão se relacionando afetuosamente com o passado. Principalmente poetas que nasceram no interior do estado, tiveram aquela razão mais interiorana, e foram pra capital. Mas o nosso bairrismo tem um lado positivo e outro negativo. O positivo é ser muito mais fácil fazer fofoca. Tudo entra com uma rapidez incrível. Tu tens uma avidez por conhecer todo mundo. E o negativo é a prepotência. Uma prepotência histórica. O gaúcho é paranoico. Sempre pensa que o país o está desmerecendo, passando pra trás... Gaúcho é exagerado.

    Lucas – Mas é bacana isso que você falou. É mais ou menos o que o Machadodefende naquele ensaio “Instinto de Nacionalidade”: um “certo sentimento íntimo”. Não é preciso gritar aos quatro cantos “eu sou gaúcho!”, pois nós somos mesmo, nascemos aqui, sempre levaremos nossa terra com a gente, querendo ou não.

    Carpinejar – Eu digo que nós vivemos numa cidade, por exemplo, com intervalo comercial. Toda hora tu tens que dizer: “bah, olha que bonito! Olha que Parcão lindo, que pôr-do-sol!”... Pra ver o quanto somos subjetivos: nosso principal ponto turístico é um pôr-do-sol. Que é subjetivo.

    Leandro – Mas em Pelotas tem um parecido...(risos gerais)

    Flávio – Ainda falando de RS: aqui há uma comunidade literária menor e um pouco fechada, de certa forma, porque mal existe um mercado, mal há leitores que consomem o que é produzido aqui. Você publica poesia e crônica, escreve para jornal, é professor universitário – atividades comuns a muitos outros escritores gaúchos. Como é, então, no momento da crítica, de um criticar o outro, sendo que um dia o criticado pode te contratar no jornal, te convidar para dar aulas?... Como se mexer dentro dessa relação pequena que envolve praticamente todos os estágios da aceitação de um autor na comunidade?

    Carpinejar – Olha, eu tinha dois caminhos a escolher: o do afeto ou o da diplomacia. A diplomacia é um afeto profissional, que não é meu caso. Então, vou errar, vou ser exagerado, desproporcional, mas vou ser autêntico. Não tenho como fazer conchavo.

    Lucas – Mas há um certo espírito de patota no meio literário brasileiro, não há?

    Carpinejar – Sim, mas a que panela eu pertenço? Tá fervendo? Já passou do ponto? Quero saber, pra não gastar gás à toa. (risos)

    Lucas – Estou falando de um modo geral. No Brasil, muito escritor não critica livro de outro porque é amigo – coisa que acontece muito menos nos Estados Unidos e na Europa, por exemplo.

    Carpinejar – Bom, eu critico. Já perdi amigos até. É natural. Só tenho o cuidado de não defender minha obra criticando a dos outros. Isso é o principal narcisismo. Alguém tem um tipo de poema, um tipo de verso, e quer que o outro escreva absolutamente igual. Se não for igual, não é bom. Não é assim. Tu precisas ter uma cultura para ter discernimento. Ter outras leituras para tu combateres o teu estilo. Na hora em que tu estás lendo, não é pra se repetir.

    Flávio – Mas você acha que essa pluralidade existe aqui, de uma forma livre, sem traumas? Porque quem acompanha o meio...

    Carpinejar – (interrompendo) Apanhar é um trauma! Receber uma crítica negativa é um trauma.

    Flávio – Mas o problema não é apanhar, é reagir. Aqui, muita gente não reage bem a críticas.

    Carpinejar – Mas aí fico me perguntando: será que literatura não tinha que voltar a ser briga de trânsito, com as pessoas reagindo com veemência? Acho que está faltando passionalidade, está faltando se importar, está faltando barraco. Tá tudo muito civilizado. E isso não é sinal de que amadurecemos. É sinal de covardia. O educado pode ser reprimido. Não sei se estamos sendo educados ou reprimidos. Só que há poucas editoras publicando, o espaço é muito disputado, há pouco espaço nos jornais – pra mim, a grande crítica hoje está sendo feita na internet –, há poucos representantes de uma geração nova de críticos. Não há aquele escritor que é crítico, mesmo. Como o Wilson Martins, que faleceu há pouco. Ele era só crítico. Não, o que se vê são escritores fazendo crítica apenas para sustentar a sua produção. E isso torna viciada a leitura, porque não há independência. A crítica fica como suporte, na verdade.

    Flávio – Só um acessório.

    Carpinejar – É. Tem o caso do Drummond, que é quase unânime. Por quê? Ele elogiava todo mundo!

    Lucas – E há outro caso bem ilustrativo: certa vez, o José Guilherme Merquior estava conversando com o Paulo Francis e disse pra ele que, ao contrário da maioria, não via tantas qualidades na poesia do Bandeira. O Francis sugeriu que ele redigisse um artigo expondo essa opinião, para publicar na revista que ele editava. E o Merquior recusou para não afrontar a patota... Esse medo de desagradar é um grande problema da crítica brasileira.

    Carpinejar – Pois é, eu acho que o Drummond foi egoísta. Ele foi monarquista. Ou seja, deixava de dizer o que pensava dos outros para guardar para si. Foi individualista. Pois, ao fazer uma crítica, tu exercitas teu gosto, e o gosto do outro. É um confronto. Mas o Drummond não queria se expor. E tem muitos escritores gaúchos assim.

    Leandro – No meio cinematográfico, se vê muito disso também. É um meio em que todo mundo trabalha junto, todos precisam uns do outros. E esse “coleguismo” leva a esse medo de criticar.

    Lucas – Pois é, os laços afetivos se sobrepõem aos demais. É uma deficiência cultural nossa, que o Sérgio Buarque de Holanda apontou no “Raízes do Brasil”.

    Carpinejar – Mas eu ainda acredito que isso é muito mais da geração anterior. A geração anterior levava esse compadrio literário ao extremo. Havia como que “currais eleitorais”. E hoje em dia não vejo mais isso. Até porque tu podes, com a globalização, falar com qualquer um, a qualquer momento. Acho que antes se andava mais em “casamatas”. É mais difícil fazer panela, hoje.

    Lucas – Para seguir falando de crítica: você dedicou o livro “Meu Filho, Minha Filha” para, entre outros, o Daniel Piza, com o comentário de que ele te ajudou “a reconhecer o que poderia mudar e o que deveria permanecer”. O Piza é um dos maiores entusiastas do seu trabalho. Como é a relação de vocês? Esta relação crítico-escritor?

    Carpinejar – O que eu gosto no Piza é a sinceridade enternecida. É o que estávamos conversando: se tu gostas de alguém, tu terás um rigor, aquela preocupação rigorosa. Eu sou muito mais rigoroso com quem eu amo do que com quem não conheço. Sou capaz de destruir quem eu amo. Acho que a gente precisa disso. E o Piza é assim, é contundente. Ele diz: “olha, Fabrício, acho tal e tal...”. E o que ele diz é algo pra tu pensares.

    Leandro – E qual a sua opinião sobre os cadernos culturais dos jornais de hoje? Eles estão cada vez mais tomados por notinhas, horóscopo, passatempos, resumo das novelas, enquanto que deveriam publicar mais reportagens, mais críticas, mais inéditos literários. Você, que tem formação jornalística, pensa que dá para reverter essa superficialidade? Ou o futuro do jornalismo cultural está na web?

    Carpinejar – Primeiramente, vejo que está ocorrendo uma espécie de atrofia do jornal. A Folha, por exemplo, já deixou de produzir alguns suplementos...

    Lucas – Por outro lado, o Estadão lançou o Sabático, um suplemento literário, que circula aos sábados.

    Carpinejar – Sim. Mas eu fico pensando: o escritor quer ter um reduto, um quintalzinho dele, que se chama literatura ou cultura. Por que ele não é capaz de exercitar Comportamento, e as outras editorias? Por que ele é tão passivo? Por que não cria projetos para levar literatura e crítica a outros espaços? Acho que, com a web, isso modifica bastante.

    Flávio – Você a encara de uma maneira positiva?

    Carpinejar – Além de tudo, a internet valoriza o leitor que não tem grana para comprar o livro. Quem quiser comprar meu livro do twitter para ler na cama, tem condições de comprar. Mas quem não tem, pode ver tudo na web. A mesma coisa com o blog. Eu me sustento com ele? Não, mas ele me ajuda a me sustentar. Tenho-o desde 2003 e nunca abri espaços comerciais nele. Mas praticamente me sustento com a literatura. Se não com os direitos autorais, que ajudam muito, é com as palestras, as oficinas, as andanças. Meus blogs são necessários pra mim. Meus treinos são públicos, entende? São aperfeiçoamentos, são exercícios, e são públicos. Há escritores que se exercitam no escuro, na solidão. Eu não. Os leitores podem acompanhar minha evolução. Ou minha decadência... (risos)

    Lucas – E a opção por manter um “consultório sentimental” na internet não é um pouco arriscada?

    Carpinejar – Totalmente! O que eu fiz na minha vida que não foi arriscado? Só o fato de ter escolhido ser poeta já foi o maior risco!... (risos). Até nem sei como podem me chamar de marqueteiro sendo poeta... É o antimarketing, em questão...

    Lucas – Mas você não teme que essa “fama” de “conselheiro” ofusque seu trabalho na poesia?

    Carpinejar – Acho que não. Tenho que estar onde as pessoas me esperam. Tenho que mudar de lugar. É próprio do volante dar palpite. Qual o problema de dar um palpite amoroso? Posso fazer boas reflexões ali. Acredito na pertinência disso. Não importa o suporte. A gente usa muito pouco a criatividade. O conteúdo é que faz o suporte. Muitos mantêm blog sobre futebol, por exemplo – mas há algum que fale só dos juízes? Um blog chamado “Filho da Mãe”, para falar da atuação dos árbitros? Isso é necessário! Mas ninguém se importa com o juiz...

    Leandro – Viver de arte é difícil. Poucos escritores brasileiros vivem só de literatura. E aí entramos na questão dos incentivos culturais – que são diferentes de “política cultural”, é bom frisar. Os incentivos realmente ajudam a fazer a roda girar?

    Carpinejar – Ajudam. Mas os incentivos culturais ainda estão nas mãos de poucos, que sabem fazer projetos, captar recursos... Os escritores deveriam se habilitar a produzir. Saber como captar recursos para publicar um livro. Eles não fazem isso, porque não querem “sujar as mãos”. Ainda pensam que cuidar da própria trajetória é diminuir sua grandeza literária. Pôxa, se tu tens filhos, tu tens que ser prático! Não adianta dizer pro teu filho: “ah, querido, estou com um bom livro a ser publicado, que pagará todas nossas contas!...” Não é possível fazer isso. É um idealismo superficial. É mais preguiça que idealismo, aliás.

    Leandro – Você acredita ser necessária uma política pública de cultura?

    Carpinejar – Acredito ser necessário saber lidar com o mercado. A instabilidade de um escritor pode ser sua arma mais primitiva: “Que bom que eu não tenho como pagar minhas contas! Estou livre pra criar!...”. Mas haverá sempre um desespero, claro...

    Lucas – Leis de incentivo à cultura: você é a favor?

    Carpinejar – Sou. Sou a favor das bolsas, como a da Petrobrás. Mas não participo, porque acho necessário deixar espaço para quem não tem editora. Eu tenho editora, não preciso disputar espaço...

    Lucas – Que bom ouvir isso...(risos)

    Leandro – Pois é. Há artistas já consagrados que utilizam esses incentivos...

    Carpinejar – Mas por que vou participar de concursos governamentais de inéditos literários? É uma chance para outras pessoas. Que talvez sejam melhores do que eu, e ganhariam de mim no concurso de qualquer jeito. Não é a qualidade que está em questão. Temos que valorizar quem está vindo. Se a poesia de quem vier for mais forte, eu também fico mais forte. Mas a poesia tá mais fraca! Porque um poeta tenta matar o outro. A antropofagia não acabou. Que merda foi a Semana de Arte Moderna! Gostaram de se comer uns aos outros... É triste isso.

    Lucas – Você mencionou a antropofagia, e eu lembrei: outro movimento que ainda não foi deixado para trás é o concretismo, não?

    Carpinejar – O concretismo foi uma ameaça da geração de 60, que se sentiu ameaçada, aliás... (risos). Foi importante como uma transição. Não é um movimento definitivo, algo que abarca um sentido maior da cultura brasileira.

    Lucas – Sim, você já declarou que “movimentos provisórios no país se transformaram em governos permanentes”. E é verdade.

    Carpinejar – Mas o concretismo não desperta mais tanta idolatria. Isso já arrefeceu um pouco. Talvez em função da morte do Haroldo de Campos...

    Lucas – Mas ainda há quem considere “por fora”, “careta”, quem não reze no altar dos concretistas...

    Carpinejar – É, mas... Na verdade, chamavam de ‘concretistas’ poetas que eram amigos do Haroldo, do Augusto (de Campos), do Décio (Pignatari)... Mas estes poetas nem concretistas eram. Só pelo fato de ter uma proximidade com os concretistas já os chamavam assim. Isso é falta de critério. Já o Rio Grande do Sul nem teve concretismo. Teve o Pedro Escosteguy e outros poucos casos.

    Flávio – Como é dar aula? Ser poeta e dar oficina sobre poesia, uma arte não totalmente subjetiva, mas com forte carga de subjetividade?

    Carpinejar – Sabe aquele aluno que bagunçava no fundo da sala de aula? Sou eu ao quadro-negro. (risos)

    Flávio – Mas como é? Funciona só “jogar” um banho de história em quem busca poesia, ou você ensina alguma técnica?

    Carpinejar – Funciona, mas ensino técnica, sim. Ensino meu método, como estranhamento, como desafio. As pessoas vão escrever poesia quando não pensarem que estão escrevendo poesia. Porque tu usas a poesia pra te convencer de que és alguém sensível, importante. Poesia não é isso. Poesia é aceitação do fracasso. Essa é nossa vitória.

    Flávio – “Poesia é aceitação do fracasso” é um pensamento bem moderno... Porque no século 20, pelo menos, a tendência era o anti-herói, era ver a beleza no derrotado. O heroísmo era de quem perdeu.

    Carpinejar – Mas não estou falando que perdi. O fracassado é o vencedor.

    Flávio – É justamente o que estou dizendo.

    Carpinejar – Fracassado é quem não precisa de reconhecimento. Reconhecimento é algo que tu tens que pagar todo mês. Eu vou continuar carregando uma mala sem alça, mesmo que essa mala seja eu. A poesia é um despropósito. Poeta tem que se preocupar com aquilo que não tem importância. Dar importância ao que não tem. Gosto de uma história: a Clarice Lispector, quando a mãe dela morreu, se sentiu culpada por ter deixado uma tesoura aberta em cima da mesa... Poesia não é falar da morte da mãe, é falar da tesoura aberta sobre a mesa. É muito mais contundente. Tem que puxar dentro da memória o que é capaz de levar o leitor para a sua. Poesia não tem escada rolante, é preciso pisar cada degrau. É lembrar que se andava num balanço de pneu, e brincar: “Aprendi a me balançar num pneu. Tenho muito mais chance de ser atropelado”...

    Leandro – Uma curiosidade: você teve uma experiência forte de bullying, como se diz hoje, na infância, mas fala disso com naturalidade e humor.

    Carpinejar – É, eu tomo cuidado pra não virar coitadinho, vítima. A gente gosta muito de sofrer para depois conseguir um “fiador”, dizer “dei a volta por cima”...

    Lucas – Essa é outra tendência da nossa cultura: bancar o coitadinho.

    Carpinejar – É.

    Leandro – Mas a forma como você expõe o problema não provoca isso. Nunca ouvi ninguém te chamar de coitadinho.

    Carpinejar – Porque eu mesmo reconheci depois o quanto era feio e comecei a rir de mim! Não fiz aquela coisa: “descobri que sou bonito!”... Não! Precisamos ser honestos com nossa própria pobreza. Não costumamos ser assim. E eu lembro que só ficava na sala de aula quando sabia que ia apanhar na saída. O colega dizia: “vou te pegar lá fora!”. Aí que eu ficava na sala. Não saía. (risos). Mas não vou dizer que meu passado era um tempo melhor. A gente costuma dizer isso para subestimar o presente dos nossos filhos.

    Leandro – É verdade.

    Carpinejar – Não aceitamos que nossos filhos estejam vivendo um tempo legal também. Dizemos: “bah, no meu tempo eu brincava de pião, de bolita...”. Pôxa, eu daria tudo pra jogar um PlayStation!... (risos). Mesma coisa dizer que era bom namorar no portão. É horrível, cara! (risos gerais). Ficar empedrado, te segurando, com tesão acumulado... Que horror.

    Lucas – Vamos terminando, então. Como não gosto de entrevistas clichês, não vou perguntar “quais são suas influências?”, porque muitos já devem ter te perguntado isso e você também deve estar cansado de responder.

    Carpinejar – E eu sempre minto.

    Lucas – E eu já sei que você aprecia Drummond, Bandeira, Goethe, Machado... E eu vejo um pouco de cada um deles no seu trabalho – o humor do Machado e o trato com o cotidiano do Bandeira e do Drummond, por exemplo. Então, para terminar, queria que você dissesse em que altar você não reza. Cite uma “vaca sagrada” da literatura brasileira ou mundial que realmente não faz a sua cabeça. Um poeta, por exemplo.

    Carpinejar – (pausa). Mas preciso odiar mesmo?

    Lucas – Não precisa tanto... (risos). Pode ser alguém para quem a maioria construiu o altar, mas você não colocaria um tijolinho lá.

    Carpinejar – Eu posso citar um autor, mas colocá-lo no altar já é um baita elogio...(risos). Pode ser um altar que eu acho desvalorizado? Jayme Caetano Braun. Gosto muito da faísca de pensamento, do improviso, da poesia feita pra morrer na boca.

    Lucas – No altar do João Cabral, você reza?

    Carpinejar – Rezo. Até porque ele tem voz de padre...

    Lucas – É ótimo. “Faca só lâmina”...

    Carpinejar – Sim, mas um pouco de plumas também adoro.

    Flávio – Gosta de Ferreira Gullar?

    Carpinejar – Muito. Pra mim, é o maior poeta vivo.

    Lucas – E poesia portuguesa? Camões, Pessoa...

    Carpinejar – Adoro. E também Cesário Verde, Sophia de Mello Breyner... Conheço bem os portugueses.

    Lucas – E os de língua inglesa?

    Carpinejar – Gosto. Auden, Yeats... Mas dos contemporâneos já não sou tão fã. Acho uma poesia mais experimental...

    Lucas – Sylvia Plath?

    Carpinejar – Adoro. E o Ted (Hughes, foi marido de Sylvia) também. “Cartas de Aniversário” é soberbo.

    Lucas – Mas ela é mais eletrizante, intensa...

    Carpinejar – Sim, ela é elétrica, né? Mas ele é muito bom. E até agora não lembrei um nome que não gosto...

    Leandro – A pergunta dele foi ótima.

    Lucas – Muito obrigado...

    Carpinejar – De quem vocês não gostam?

    Lucas – Eu meio que já falei aqui... Mario Quintana e os concretistas, por exemplo. Pra mim, são supervalorizados.

    Carpinejar – Mas é algo pra quem se reza também! O Haroldo de Campos tem livros importantes. “Galáxias” é muito legal.

    Flávio – Gregório de Matos?

    Carpinejar – Gosto.

    Lucas – Augusto dos Anjos? Esse eu acho subvalorizado, inclusive.

    Carpinejar – Também gosto.

    Lucas – Olavo Bilac?

    Carpinejar – Também. Acredito até que ele é desconsiderado. É um bom poeta, de grandes metáforas.

    Lucas – Mas o “Ora (direis) ouvir estrelas” não é meio meloso?

    Carpinejar – Tu achas meloso? Já leu quantas vezes?

    Lucas – Várias. Na quarta leitura, já achei meio meloso...(risos)

    Carpinejar – Então tu não sobreviverias nem a uma terceira leitura minha... (risos)

    Lucas – Mas você não passa a linha do meloso. Sua poesia é sentimental, é tocante, mas não é piegas. Atinge um equilíbrio, isso é importante.

    Carpinejar – Mas pra mim o “Ouvir estrelas” não é meloso. Olavo Bilac é uma espécie de “pagode” da poesia brasileira: já tocou em tudo que é estação... (risos)

    Leandro – Os modernistas? Você falou da antropofagia aqui...

    Carpinejar – Mas Mário de Andrade teve um papel de mobilização importante...(pausa). O problema é que eu tento encontrar uma coisa boa nesses caras... Sempre se aproveita alguma coisa. Quero citar um que eu lembre e diga: “pá, não quero isso mesmo”... (nova pausa). Vou fumar um cigarro lá fora e pensar. Já digo pra vocês.

    (Sai à rua e volta pouco depois).

    Lucas – E então?

    Carpinejar – Pablo Neruda. Poesia política, não. Não gosto de poesia engajada.

    Lucas – Explicitamente engajada não é legal, né?

    Carpinejar – É. Realismo só pro socialismo – isso eu não gosto.

    Lucas – É, o cara pode ser politizado e não ser ideológico.

    Carpinejar – É. “Residência na Terra” é muito bom. Mas aqueles poemas políticos, meu deus... Não tem mais o que fazer. É intragável. Fico enjoado. Azia e má digestão. Sal Eno pra eles.

    Lucas – Ok. Obrigado pela entrevista, em nome de todos.

    Carpinejar – De nada.

    carpinejar entrevista

     

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