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    La mandarina


    Antes de escrever a última frase, deu um soco na mesa. Assim como os copos, o coração estremeceu. Os pratos dançaram, rodopiaram, mas não caíram no chão. Ia embora, só com a roupa do corpo. Garfos, facas, punhais, em círculos, talhavam a carne nervosa há 20 anos. Engoliu o último gomo da bergamota.

    Mesmo na despedida, tinha que dar alguma satisfação. As letras mal desenhadas no bilhete justificavam a loucura repentina. No ar, um odor cítrico. Na porta, os sacos de lixo que, hoje, não seriam despejados. Arrematou o recado, bastaram dois parágrafos. Meio em castelhano, meio em português. Pendurou no ímã da geladeira. Em seguida, pegou a mala e bateu a porta de casa. Carregava três camisas e duas calças. Após duas décadas, tinha de levar algo consigo, afinal. As cascas da fruta permaneceram sobre a mesa.

    Passou pela senhora do 405, balançou a cabeça. Entrou no elevador. No colo do zelador, um cãozinho vira-lata. Passou a mão nos pêlos brancos do animalzinho e sorriu. Já no térreo, abriu a porta e caminhou até a saída. O funcionário do prédio resmungou alguma coisa, em vão.


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    Na rua, um feixe alaranjado de sol refletia-se no vidro do carro. No início a dor nos olhos, depois um colírio para a retina. O táxi esperava em fila dupla. Colocou a mala no banco de trás e sentou-se no carona. Rumo ao aeroporto: Buenos Aires.

    Às 18h, ela abre a porta do prédio. O zelador dá boa tarde e olha acabrunhado. Ela entra no elevador e sente cheiro de cachorro. Do corredor, sente o odor acre. Abre a porta do apartamento e tampa o nariz com a mão. Acende a luz. Os sacos de lixo não foram despejados. Em cima da mesa, a casca de bergamota, três sementes dentro. Dois copos deitados, um prato quebrado no chão, também alguns talheres, jogados. Na porta da geladeira, um bilhete: adeus, cansei, suerte, descongelei o frango, não me procure.

    A moça chora. Mesmo com a maquiagem borrada vai falar com o zelador. O funcionário diz que o viu entrando em um táxi, e só. A senhora do 405 confirma que ele levava uma mala. Ainda chorando volta ao apartamento, pega o bilhete e rasga. Coloca um disco de vinil para tocar.

    Passa a noite sentada na sala, à espera dele. O cheiro do lixo faz com que se lembre do último jantar. Vinho tinto, arroz, camarão ao molho branco, Carlos Gardel. Na mão direita, duas sementes de bergamota. Na esquerda, um revólver contra a própria cabeça.


    jeison carnalJeison Karnal

    Jornalista e escritor, autor de O Negociador de Reféns (2014).



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