A cruzinha de madeira podre resiste fincada na lama. Os anjos de bronze esqueceram do Campo Santo. O coveiro luta com a terra, camponês plantando batatas. Números, códigos de barras e mercadorias. A múmia e os despojos. A chuva fina encharca a despedida. A fome do meio-dia. A bota embarrada apressa a extrema-unção do trabalhador.
Os vermes têm apetite, ricos e pobres são alimento. No Olimpo, o mármore é branco. Coroas de flores. Médicos, engenheiros, políticos protegem as reputações. Placas de reconhecimento. No Campo Santo, não há corpo, há obrigação para outro trabalhador. Todos carregam uma cruz, a mesma cruz em lados opostos. Um buraco, um caixão. Só o coveiro a tapar o lote que um dia será o seu, pai indiferente que vela o sono do filho pródigo. Os anjos de bronze não pousaram no Campo Santo.
O coveiro guarda as ferramentas. Vai concretar o destino de outro nas catacumbas, espigões de ossos acumulados. Nunca sabia o nome de quem enterrava. Contava as oito horas, esperava o tíquete refeição e o dinheiro para pagar a conta da luz. O quanto os ombros pudessem cavar, cavava. Esburacava junto o próprio peito, calejava a esperança. Ser ou não ser. Ao pobre resta o silêncio capital de não ser, em meio às batatas.
Jeison Karnal
Jornalista e escritor, autor de O Negociador de Reféns (2014).