Até onde se sabe, aqueles que Vinicius de Moraes considerou, nos anos 1970, serem os dois maiores músicos modernos da América Latina – para o futuro confirmá-lo – só se encontraram uma vez, nos ensaios do programa Chico & Caetano, apresentado por Chico Buarque e Caetano Veloso na TV Globo, em 1986. Tom Jobim e Astor Piazzolla eram os convidados da edição de maio. Por pouco, contudo, o roteiro não teve de ser rasgado. Irritado por Chico não ter concluído a letra para um tango que compusera, a ser executado no programa, o argentino quis ir embora da gravação. No que o diretor Daniel Filho, para não perdê-lo, lançou mão de uma boa jogada: “Espere, gostaria que conhecesse o maestro Antonio Carlos Jobim”. Ao ver o colega brasileiro, então, Piazzolla ficou calmo e respeitoso. Os dois tiveram uma conversa animada, inclusive sobre as “omissões” do parceiro Chico, e a gravação do programa, em que Jobim tocou “Coração vagabundo” (de Caetano), “Sabiá”, “Tema de Gabriela” e “Águas de março”, e Piazzolla, “Michelangelo 70” e “Adiós Nonino”, transcorreu bem, sem cenas de drama argentino ou desorganização brasileira.
Se encontro “físico” só houve esse, e se os países e gêneros musicais dos dois são diferentes, o mesmo não se pode dizer de suas trajetórias e das características de suas obras. Jobim e Piazzolla têm vários pontos em comum e causaram impactos culturais similares em seus países. Nascido em 1927 e morto há 20 anos, em dezembro de 1994, Jobim estudou música sinfônica na juventude e iniciou a carreira tocando piano em bares e boates cariocas e fazendo arranjos para cantores, até ser convidado por Vinicius para musicar “Orfeu da Conceição”. Nascido em 1921 e morto em 1992, Piazzolla, também lembrado neste 2014 em razão dos 40 anos de “Summit – Reunión cumbre”, disco que gravou com o saxofonista Gerry Mulligan e que se tornou um dos mais estimados do jazz, de igual modo estudou piano clássico na adolescência – bandoneón, ele aprendeu ainda criança – e começou a trabalhar como músico em pequenos shows em Buenos Aires, até entrar para a orquestra tanguera de Anibal Troilo e, depois, fundar seu próprio grupo. O gosto de ambos por música de concerto, porém, conviveu com audições de jazz e música “popular” de seus países. Jobim, apreciador de Chopin, Ravel, Debussy e Villa-Lobos, também foi formado por Gershwin, Pixinguinha e Caymmi. Piazzolla, ao mesmo tempo em que adorava Bach e Stravinsky, ouvia Duke Ellington e, claro, Gardel.
A mistura desaguou em seus trabalhos autorais. Uma das marcas das obras de Jobim e Piazzolla é, justamente, o rompimento de fronteiras entre “erudito” e “popular”. Os acordes e melodias inspirados em sonatas e prelúdios que Jobim trouxe ao samba – ouça: os primeiros compassos de “Insensatez” têm quase as mesmas harmonia e melodia do “Prelúdio em mi menor, op.28, n.4”, de Chopin –, unidos depois à batida sincopada do violão de João Gilberto, configuraram a bossa nova. Piazzolla, também nos anos 1950, empreendeu uma revolução análoga: aliou o tango a formas que conhecia do jazz e de peças sinfônicas e, assim, levou-o para salas de concerto, e não apenas para salões de baile, como era até então. “Tanto Jobim quanto Piazzolla usam à exaustão aquela harmonia que vem de Bach: ir descendo os baixos. As harmonias de Insensatez e Libertango, por exemplo, que são quase as mesmas, vêm desses baixos contínuos barrocos, de onde Chopin partiu também”, analisa o músico e radialista gaúcho Arthur de Faria, fã dos dois compositores. O nuevo tango de Piazzolla comportava ainda dissonâncias típicas do jazz e da música “erudita” do século 20, da qual Stravinsky é o maior nome. Jobim igualmente formava acordes dissonantes (mas sem soar difícil ou desagradável). A conexão com o jazz, nesse aspecto, se dá porque os músicos do bebop, segundo Arthur, estudaram os mesmos impressionistas franceses que Jobim estudou, e Piazzolla também, embora sua ênfase tenha sido em Stravinsky.
Ambos tinham ciência de que andavam num terreno livre. “Não defino linhas de fronteira entre a música popular e a erudita. Inclusive [em] Chopin, Villa-Lobos, está cheio de temas populares dentro da música erudita. Essa divisão é falsa, não leva a nada”, declarou Jobim. Villa-Lobos, aliás, autor tanto de choros e valsas quanto de obras orquestrais, talvez tenha sido a maior referência do pianista. Piazzolla parecia concordar sobre essa “falsa divisão”: dizia que a “lógica interna” do seu trabalho embasava-se na música de concerto, apesar de ter as raízes no tango. “Tanto os músicos de tango como os eruditos me odeiam”, afirmava. Ele compôs “Las cuatro estaciones porteñas” inspirado em Vivaldi, mas as fez em separado, sem querer montar uma suíte em quatro movimentos. Além disso, chegou a elaborar peças estritamente “eruditas”, bem como Jobim. Essas, contudo, não alcançaram a mesma expressão que as composições “populares” deles.
Jobim contestou Paulo Francis quando o jornalista disse que bossa nova era “50% jazz”, porém nunca negou que a música americana também o formou. Como atesta até um título de canção, houve influência do jazz, sim, na gestação da bossa nova. Parcerias com músicos dos EUA, por sinal, de igual modo marcam Jobim e Piazzolla. Os dois dividiram álbuns com saxofonistas expoentes do jazz: Stan Getz, no caso de Jobim, e o já citado Gerry Mulligan, no de Piazzolla. O primeiro encontro resultou em “Getz/Gilberto”, disco lançado há 50 anos e que, com João Gilberto ao violão e nos vocais, traz a versão mais envolvente de “Corcovado”. Já “Summit” contém a arrebatadora “Años de soledad”.
Eles podiam, ainda, trabalhar ou não com palavras. Jobim era mais cancionista, mas compôs vários temas instrumentais. Três, de forte inspiração villa-lobiana e debussyana, estão no disco “Urubu”, de 1976. Piazzolla, nesse quesito, era o contrário: fez sucesso com “Balada para un loco” (“Ya sé que estoy piantao, piantao, piantao...”), parceria com o poeta Horacio Ferrer, e, com o brasileiro Geraldo Carneiro, compôs “As ilhas”, gravada por Ney Matogrosso, mas era mais de criar temas.
Aproximam-se de novo nos ataques que sofreram em seus países. Com suas aberturas ao que de bom se produzia nos EUA e na Europa, Jobim e Piazzolla, claro, foram acusados de “desnacionalizar” seus gêneros. O pesquisador José Ramos Tinhorão e o escritor recentemente falecido Ariano Suassuna, para citar dois críticos notórios, tacharam Jobim de “americanizado”, quando o que ele fez foi modernizar a MPB, não americanizá-la (como escreveu Daniel Piza, “no Brasil, quando se olha o fundo das opiniões, o que se encontra é o raso da ideologia.”). Na Argentina, puristas igualmente desprezaram Piazzolla, por verem em seu trabalho, em que tinham vez até instrumentos como vibrafone e guitarra elétrica, um abandono da tradição do tango.
Quem tem ideia do que fala sabe que ambos os músicos conjugaram o nacional ao internacional, num diálogo saudável e frutífero. Olhavam para dentro e para fora, atitude rara na cultura latino-americana, tão polarizada. E, desse jeito, renovaram e enriqueceram a música de seus países – a bossa nova que Jobim ajudou a criar, por exemplo, é samba, mas mais complexo, com harmonias mais intrincadas e outra divisão rítmica. Tal incompreensão nacional colaborou para que Jobim e Piazzolla tivessem maior sucesso no exterior. O argentino era particularmente admirado na Europa e América Latina. Jobim, por sua vez, embora sempre tocasse aqui, não se conformava em ser mais reconhecido em Nova York do que numa cidade brasileira.
Outro traço comum a eles é a composição de trilhas sonoras memoráveis. Jobim criou, entre outras, a do filme “Gabriela” (1983), de Bruno Barreto, adaptação do romance de Jorge Amado, na qual consta “Tema de Gabriela”, e fez a canção-tema de “Eu te amo” (1981), de Arnaldo Jabor, belamente letrada por Chico Buarque (“Na bagunça do teu coração/Meu sangue errou de veia e se perdeu.”). Elaborou ainda as músicas da minissérie global “O tempo e o vento”, adaptação da obra de Erico Verissimo exibida em 1985, entre as quais a não menos bela “Passarim”. No mesmo ano, Piazzolla desenvolveu a trilha ora agressiva, ora romântica de “Tangos, o exílio de Gardel”, filme de Fernando Solanas sobre um grupo de artistas portenhos exilados em Paris durante a ditadura militar argentina (1976-83). As cenas iniciais, de muito apuro visual, mostram um casal a dançar “Duo de amor” em pontes sobre o Sena. Mas familiares também motivaram os dois: Jobim fez “Ângela” para Ana Lontra, sua segunda mulher, e “Samba de Maria Luiza” para a filha caçula; Piazzolla compôs a triste e linda “Adiós Nonino”, de longe sua melodia mais conhecida, após saber da morte do pai.
Por fim, ligam-nos os fatos de terem, depois de tudo, se tornado grandes mestres, com raros a ainda torcer-lhes o nariz, e de suas obras representarem suas nações para o mundo. Só faltou uma parceria. Treze anos antes do encontro na Globo, Piazzolla, numa entrevista em que se revelou fascinado pela MPB, disse que gostaria de trabalhar com Jobim: “Não me importa que ele seja brasileiro, como a ele não deve importar que eu seja argentino. A única coisa que deve importar é que a gente faça boa música.” Não passou de um desejo, mas a justificativa permanece. Professor do curso de música popular da UFBA e baixista da Banda Base, de música instrumental, Ivan Bastos parece tê-la em mente: uniu os estilos dos dois criadores num tema chamado “Antonio e Astor”. “Sem racionalizar muito, achei, à medida que fui compondo, que havia algo de nuevo tango na parte A da música, a qual me remetia a Piazzolla. A parte B é mais bossa nova, mais Jobim”, conta. Já executada pela Orquestra Sinfônica da Bahia, “Antonio e Astor” relaciona organicamente o tango e a bossa, ilustrando o diálogo travado pelas obras e vidas dos geniais Jobim e Piazzolla (ouça mp3 abaixo*).
Eles são mesmo complementares. Feito os dois pretendentes de Maria Regina, personagem do conto “Trio em lá menor”, escrito por outro artista genial (e apreciador de música), Machado de Assis. No conto, Regina, pianista amadora, não consegue se decidir entre um e outro. Uma noite, sonha que morre e sua alma voa até “uma bela estrela dupla”, que se parte em duas. A moça, a voar de um pedaço para outro, ouve então uma voz dizer que aquela era sua pena: oscilar para sempre entre dois astros, “ao som desta velha sonata do absoluto”. Pois optar entre Jobim e Piazzolla também parece tarefa ingrata – a audição de um enriquece a do outro. Melhor ficar com ambos. Isso, porém, não seria uma “pena”, mas uma fonte de prazer estético. Eterna.
* Áudio extraído do programa “Jazz na Madrugada”, da TVE Bahia. Enviado pelo compositor.
* Texto originalmente publicado na revista Continente Multicultural de dezembro de 2014.
Lucas Colombo
Jornalista, professor, colaborador de revistas e cadernos de cultura, editor do Mínimo Múltiplo, organizador do livro "Os Melhores Textos do Mínimo Múltiplo" (Bartlebee, 2014).