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    Notícia de um sucesso


    por Lucas Colombo

    As estirpes condenadas a cem anos de música ruim na TV e nas rádios podem ter uma segunda oportunidade sobre a terra. Basta procurar na internet e nas programações das casas de shows. O Rodrigo Nassif Quarteto, de Porto Alegre, tem feito concertos em várias cidades brasileiras, especialmente de SP e RS, para plateias cheias, e seu disco “Todos os dias serão outono”, lançado em 2015 nas plataformas digitais, chegou a liderar os mais vendidos da iTunes Store, na categoria Instrumental. Quem disse que não há público para esse tipo de música?

    A do Quarteto, aliás, é vigorosa, mescla de gêneros platinos (tango, milonga) com jazz, rock, valsa e outros – uma música “suja”, sem contornos definidos, costuma dizer o violonista Nassif, o band leader. A sonoridade de “Todos os dias serão outono” é agressiva, às vezes. Delicada, noutras. Rica, sempre. Melodias como a da faixa-título, de batida mais jazzística, e a da tangueira “Balada de los Buendía”, inspirada no romance “Cem anos de solidão”, de Gabriel García Márquez, permanecem na cabeça após a audição. E sabe o leitor que permanecer na cabeça é bem diferente de ser “grudenta”.


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    Formado em música pela Universidade de Passo Fundo (UPF), com uma temporada de estudos em Mar del Plata, Argentina, também no currículo, Nassif assinou três CDs solo, antes de formar o Quarteto: “Rodrigo Nassif” (2008), pelo qual ganhou o Prêmio Açorianos, da Prefeitura de Porto Alegre, na categoria Melhor Intérprete Instrumental; “Fronteira” (2010) e “O pulo do gato” (2011). No projeto atual, acompanham-no Carlos Ezael (violão), Samuel Cibils (contrabaixo) e Leandro Schirmer (bateria). O grupo é igualmente acurado em espírito. Para prazer dos cérebros mais atentos, evoca, em fotos de divulgação, capas de discos e imagens conhecidas de dois coletivos musicais ilustres, o português Madredeus e o americano Rat Pack.

    Nesta entrevista, o também pianista e guitarrista Nassif conta sua trajetória, comenta influências e lembra como se deram algumas composições suas e a gravação de “Todos os dias serão outono”. Por sinal, foi exatamente numa tarde fria de outono, num café porto-alegrense, que ele nos encontrou para conversar.


    1. Por que gravar “Todos os dias serão outono” em um dia só (inclusive, de outono: foi num 1º de junho)? Foi por razões técnico-operacionais ou estéticas?

    Nassif - Os dois. Nós quatro chegamos a um consenso de que o disco tinha que ser gravado ao vivo. Apesar de as partes que necessitam precisão serem ensaiadas à exaustão, não tem como passar o calor das partes de improviso de outro jeito. Mesmo com a preocupação com estrutura, é nessa liberdade que a música dá o encantamento pro público.

    2. Faz lembrar os anos 1950/60, quando a indústria fonográfica estava no auge e as gravadoras eram disputadas, os horários dos estúdios eram controladíssimos.

    Nassif - Era essa a ideia: gravar como nos anos 50. Um disco que gostamos, “Impressions”, do John Coltrane, foi gravado em dois dias. “Led Zeppelin I” foi gravado em um dia. Era isso: organicidade. O que tem que ajeitar, ajeita antes. Não pode ser música com cara de “recorta e cola”. Senão, se perde o calor do improviso.

    3. Como foi seu encontro com o violão? Por que o escolheu como instrumento?

    Nassif - Porque era o único que tinha bacharelado na UPF (risos)... Eu ouvia música em casa, quando era criança. Meu pai tocava clarinete, mas eu não me envolvia. Na adolescência, comecei a tocar guitarra e baixo como forma de ser mais popular na escola, não ligava muito pra violão. Nesse tempo, participei de um concurso da RBS (afiliada da Rede Globo), o Circuito de Rock, e ganhei, mesmo detestando minha voz, com uma música meio funk anos 70... Eu tinha uma banda em homenagem ao Frank Zappa, chamada Pêssegos em Conserva. Só fui querer tocar violão quando vi que abriu o bacharelado na UPF. Fui lá e conheci um professor, Roberto Thiesen, que me disse: ‘se tu tirar notas boas em todas as cadeiras no primeiro semestre, pode tocar no grupo de música da faculdade e no grupo de teatro, e com isso tu não paga a mensalidade e ainda ganha ajuda de custo’. Aquilo fundiu minha cuca. Hoje nem existe mais esse tipo de ajuda, pois a procura por cursos de música aumentou muito. Mas aquela oportunidade me fez entrar com tudo. Tirei as melhores notas e comecei a tocar na universidade. Fui me identificando com o repertório que o Roberto me mostrava, mais para jazz, bossa nova, e fui deixando de lado uma banda com que eu tocava na noite. Vi que aquilo era um mercado diferente, eu podia dar aula também, fazer trilha sonora... Me formei e, uns anos depois, me inscrevi em dois editais de Porto Alegre. Pra minha surpresa, fui aprovado, com repertório de violão solo. Fiz um primeiro recital na Casa de Cultura Mário Quintana (espaço cultural porto-alegrense), em 2005, com um retorno surpreendente de público, e logo em seguida me chamaram para fazer esse mesmo projeto de violão solo no foyer do Theatro São Pedro. Fiquei assustado de tocar no São Pedro, eu ainda morava em Passo Fundo... Então procurei um professor para me dar aula particular, mesmo já estando formado. Me indicaram o Eduardo Isaac, da Argentina, um violonista da área mais célebre da música latina. Ele morava em Paraná, capital da província de Entre Ríos. Fiz contato com ele e...

    4. Nessa situação que aconteceu aquela sua história com a casa do Astor Piazzolla? Essa é boa, conte.

    Nassif - Isso! Fui ser aluno do Eduardo Isaac, e foi uma surpresa total. No fim da aula, ele falou para eu voltar no outro dia. Eu voltei, e ele disse: “gostei do jeito com que tu tocou, tu tem personalidade, teu violão tem um estilo platino, com gana, não é só aquele estilo brasileiro limpinho, certinho. Arranjei uma bolsa de estudo para um mestrado, se tu quiser”. Me caiu a cara no chão! Abandonei minha vida, meus alunos, em Passo Fundo e fui morar entre Buenos Aires e Mar del Plata. As aulas do mestrado eram num conservatório em Mar del Plata. E toda manhã, no meu caminho pro conservatório, eu passava na frente do sobrado onde nasceu o Piazzolla. O batente da porta tem uma placa que diz: “Nesta casa, nasceu e viveu Astor Piazzolla”. Eu não aguentava, todas as manhãs eu ia lá e esfregava meu ombro no batente (risos)... Durante o ano inteiro que fiquei lá, fiz isso, para ver se eu pegava um pouquinho do Piazzolla...

    5. A influência é notável. “Citadina”, que está no “Todos os dias serão outono”, tem algo de “Libertango”, “Violentango”...

    Nassif - Claro, tem bastante. Hoje, Piazzolla nem está tão presente assim no meu trabalho, mas a influência é grande, claro.

    6. E “Citadina” tem também algo mais pop. Vocês executam uns acordes fortes ali no meio, uns “ta-na-na-ná”, que lembram a introdução de “Pra começar”, da Marina Lima. Foi uma citação consciente?

    Nassif - Eu percebi depois! Quem trouxe essa passagem para a música foi nosso baixista. É assim: eu trago um arranjo cru para os guris, e eles colocam uma pitada diferente aqui e ali. Eu entendi que isso só enriquecia, não atrapalhava nada. Nós gravamos todos os ensaios do quarteto, desde o primeiro até os atuais. Todos. Algo meio Transtorno Obsessivo Compulsivo, mas que põe o arranjo pra funcionar. Vamos limando partes desnecessárias. Quando tocamos “Citadina” no ensaio, pensei: isso parece alguma coisa... Só um mês depois, ouvindo a gravação, me dei conta: parece a introdução daquela canção da Marina. Mas deve parecer outras coisas também... Em se tratando de citações, é valido, porque queremos incorporar muita coisa ao trabalho.

    7. Foi também na Argentina que você começou a compor?

    Nassif - Eu estudei com o Isaac, fiquei um ano e meio na Argentina, e circulando por Buenos Aires, convivendo com aqueles músicos de nível altíssimo, comecei a ter vontade de compor. Em 2006, fui a um simpósio de violão em Paraná e toquei uma peça muito difícil do Joaquín Rodrigo (compositor espanhol), que eu estava estudando como peça de formatura do meu posgrado, esse da bolsa que o Isaac me deu. O pessoal aplaudiu razoavelmente. Depois toquei uma música minha, “Bageense”, que está no meu primeiro disco, e a plateia, toda de violonistas, aplaudiu de pé e pediu bis! Me perguntaram de quem era a música, porque queriam a partitura. Eu tinha feito naquela semana, no hostel. Fiquei desconcertado com a reação. Mas estava acabando minha bolsa. Voltei pro Brasil, conheci minha mulher, fui morar na Praia do Cassino (região sul do RS). Quando começou a acabar o dinheiro que eu guardei das aulas que dava para estrangeiros no hostel, pensei: preciso fazer alguma coisa. Fiz uns shows de violão solo, me receberam bem. Mas veio uma proposta de um selo pequeno de Passo Fundo, o Café com Leite. Eu poderia gravar no estúdio por quantas horas quisesse, desde que fosse material original. Bem na época em que eu estava lendo “Cem anos de solidão” e em que choveu sem parar na Praia do Cassino por uns dez dias... Ficamos atolados em casa, chuva e frio... Saíram várias músicas, naqueles dias.

    8. Pois um dos temas do álbum, “Balada de los Buendía”, você compôs justamente inspirado por “Cem anos de solidão”, de García Márquez. A música, apesar do título, não é exatamente balada, é um tango com tempero rock. O que esses gêneros têm a ver com o romance, na sua opinião?

    Nassif - Essa música é do meu primeiro disco, foi rearranjada para o novo. As quatro primeiras músicas do meu primeiro disco, de 2008, que ganhou Prêmio Açorianos, saíram direto, como eu nunca tinha experimentado compor na vida. Uma catarse. E o que eu vejo do García Márquez na “Balada de los Buendía” é, principalmente, o contraste entre as partes da música. Tem uma primeira parte com um cantabile superfácil, três notas: lá-ra-rá, li-ra-rá... Este é o temperamento claro e animalesco dos Buendía. E depois entram todos aqueles acordes dissonantes... Por quê? Morreram os trabalhadores no bananal, Arcádio quis casar com Remédios mesmo achando que era parente, o outro colava dinheiro na parede, “somos uma família sem freio”, e chove quatro anos sem parar... O livro não tem limites. E, ao mesmo tempo, tem cenas muito oníricas, líricas...

    9. O tango tem isso, não? Comporta sentimentos ambíguos. É um gênero triste, mas de uma tristeza “ritmada”, calculada.

    Nassif - O tango tem direito à dubiedade. Tem o lunfardo, o dialeto dos “malandros” que moravam perto do rio da Prata. O título de uma música do quarteto é “Del scratch de la mula”, que significa “te conheço de outros carnavais” em lunfardo uruguaio.

    10. E como se deram as criações desses temas que você compôs inspirado pelo livro – além de “Balada de los Buendía”, ainda “Balada de los Buendía II”, “Café sem açúcar” e “Tango de Aureliano”, do seu primeiro disco? Você estava lendo e largou o livro para ir compor, ou levou tempo?

    Nassif - Na metade do livro, botei o violão no colo e saiu a “Balada”, inteirinha. Pensei: isso tem a ver com o livro, a leitura está me deixando emocionado, fazia anos que não me envolvia assim com um autor, parecia que ele conversava comigo. Um envolvimento genuíno. Só poderia atribuir a inspiração ao livro. Afora a identificação com as manias dos personagens: como o Aureliano, eu nunca gostei de pôr açúcar no café e nunca achei que uma pessoa, em certo sentido, deveria ser totalmente sincera ao falar... Levei uns chapuletaços. Foi o primeiro García Márquez que li, depois li quase todos. Mas de colocar em nome de música foi só com “O amor nos tempos do cólera”. Uma que não registramos em disco ainda, mas tocamos no show, chamada “Companhia do Caribe” (empresa em que o protagonista do romance trabalha).

    11. Tendo essa ligação com literatura e uma passagem como vocalista de banda, você nunca quis compor canções?

    Nassif - Eu componho. São horrorosas, por isso que não apresento (risos). Algumas, estou fazendo em parceria com um rapaz profissional da canção, Duda Fortuna (compositor gaúcho). Sou fã dele.

    12. Mas como é com você: faz a melodia primeiro e depois a letra, ou os dois juntos?

    Nassif - Várias das músicas do quarteto, que são instrumentais, já tiveram letra. Ou podem vir a ter. Quando faço, ponho uma letra, para manter a retórica. A nossa música que tem mais likes no Youtube, e curiosamente não entrou no disco, chamada “Tio Pepepo”, é bem dissonante e tangueira, e quando compus coloquei uma letra: “Tio Pepepo passou por aqui/ ou por ali”... Coloco uma letra e depois retiro. Para estudar, adoro solar, no violão, melodias de cantores.

    13. De quais você gosta?

    Nassif - Tenho os favoritos de sempre: (Luis Alberto) Spinetta, Gilberto Gil... Num show do Gil, no Ibirapuera, vi a máquina de cantar que ele é. Em toda minha vida de músico profissional, nunca tinha visto um sujeito cantar com uma afinação tão precisa. A moça que casou com o Hermeto Pascoal, Aline Morena, foi minha veterana na faculdade, e como bolsista eu a acompanhei por um bom tempo, tocando bossa nova. E por aí aprendi a gostar de muita coisa diferente. Meu período de estudo formal de música foi maravilhoso por isso.

    14. Você tem explicação para o violão brasileiro estar em tão boa fase? Além de você, também Yamandú Costa, Chico Pinheiro, Badi Assad...

    Nassif - Em primeiro lugar, a tradição. O Brasil é o país de Dilermando Reis, Garoto, Luis Bonfá, Baden Powell, Raphael Rabello, Paulinho Nogueira... Faz a conta: temos 200 milhões de habitantes, 10% são 20 milhões, 10% de 10% são dois milhões, 10% de 10% de 10% são duzentos mil... 10% disso são vinte mil... 10% são dois mil... Vamos supor que 10% desses dois mil sejam violonistas excelentes: meu Deus, já são 200 violonistas excelentes! A conta é absurda. É a mesma coisa de quando se fala em música instrumental e alguém se queixa: “ih, música instrumental...”. Mas olha o tamanho do Brasil.

    15. É um mito essa história de que não se ouve instrumental, não? Uma minoria se interessa, claro, mas é uma minoria ampla.

    Nassif - Bota mito nisso! Claro que não é um produto para a massa, não é o The Voice Brasil (risos), é outro nicho. Mas muita gente gosta. E tocar em São Paulo é inigualável. Tem sempre no público alguém que é pica das galáxias, que entende muito. Aparecem na plateia jornalistas, organizadores de festivais... e tudo isso graças às duas resenhas na (revista) Bravo!. Não costumo ter falsa modéstia, mas fiquei mesmo surpreso com tanta aceitação em São Paulo. A voracidade que o público paulista tem pela novidade não se parece com lugar algum do país. Aqui em Porto Alegre, a gente sabe que o público, em média, espera uma aprovação de fora. Como paralelo para São Paulo, só vejo o público portenho. Ele não espera aprovação de lugar nenhum. Vai e, se gosta, retroalimenta.


    * Entrevista originalmente publicada na página UOL Música, do Portal UOL, em 6 de junho de 2016.

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    @lucas_colombo

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