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    D.


    Na faculdade, eu era completamente apaixonado por uma menina muito magra e loira, a despeito da boca fina demais e do nariz estranhamente rechonchudo naquele rosto anguloso. Hoje sei que, a despeito do clichê, ou melhor, justamente por causa do clichê, o que me encantou nela foi a boina que usava numa aula do Hélio Puglielli.

    Passei quatro anos atrás da moça, sem sucesso. Depois da faculdade, ela se mudou para a Itália. Insistente ou persistente, não sei, continuei tentando conquistá-la por e-mail, que era como os homens das cavernas se comunicavam. Deu certo. Assim que ela voltou ao Brasil, começamos a namorar.

    Mas era um relacionamento fadado ao fracasso. Ela era evangélica atuante; eu… Bom, eu sempre fui uma confusão espiritual e naquela época não era diferente. Para um menino de 22 anos, porém, a diferença religiosa não tem nada a ver com um conflito espiritual. É a parte moral que entra em conflito com os hormônios em ebulição.


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    A moça, entre beijos mais ardentes, entre lençóis amarrotados, insistia em me evangelizar. Havia um estranho componente erótico nisso. Ela falava de céu e inferno bem reais depois do amor e eu me sentia deliciosamente pecador (com o perdão da rima) – um pecador abençoado pela presença dela.

    Um dia, ela me convidou para uma festa com os amigos da igreja. Fui, claro. Gente chata, mas havia bebida e, naquela época, bebida resolvia praticamente todos os meus problemas de sociabilidade. Bebi e conversei e bebi e conversei e não me lembro de ter feito absolutamente nada de errado além de beber e conversar.

    O problema é que o simples fato de eu estar bebendo parecia incomodar alguns. Ou melhor, algum. Em certo momento, um menino com cara de idiota (mentira, nem lembro da aparência dele na época) me puxou pelo braço, diante de todo mundo, e começou a falar alto demais sobre Deus e Jesus e bebida e inferno. Eu, que sou uma pessoa calma, fiquei ouvindo. Até o momento em que deixei de ouvir.

    Uma das mãos segurava o copo de uísque; a outra se fechava num soco improvável. O menino (imberbe até hoje) soltando perdigotos cheios lá da virtude dele, enquanto eu estudava o cenário. Um soco naquela cara seria dramaticamente lindo, mas romanticamente desastroso. Meu namoro com a moça não era dos melhores, mas naquele momento eu queria que ela fosse a mãe dos meus filhos. Acho.

    Não bati no sujeitinho. Deixei que ele terminasse a ladainha, voltei para o sofá e fiquei ali, admirando a moça que era infinitamente melhor quando habitava só meus sonhos, não a realidade.

    Lembro do episódio e do menino (a quem chamarei apenas de “D.”) sempre que o vejo na televisão, o sotaque carregado demais, o narcisismo messiânico, o rosto imberbe, o humor sem graça, os olhinhos encantados com a própria virtude, guiando a turba em sua cruzada contra a corrupção.

    E, com algum arrependimento, concluo: aquele soco que nunca dei e ele nunca levou teria feito bem a ambos. Quem sabe ele não estaria tão certo de si mesmo. Quem sabe a moça, aquela, estaria aqui ao meu lado agora: gorda e chata e amargurada. Mas ainda usando aquela boina.

    * Texto originalmente publicado no site do autor.


    paulo polzonoff jrPaulo Polzonoff Jr.

    Jornalista, crítico literário, tradutor e escritor, autor de "Manuel Bandeira" (2006) e "O Homem que Matou Luiz Inácio" (e-book, 2016).



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