Um dos grandes artistas da história do cinema foi um transgressor, alguém que rompeu com as convenções da produção cinematográfica de seu tempo. Foi também, pessoalmente, um enigma, pois, de personalidade reservada, não gostava de aparecer em público nem de dar entrevistas. Teve o privilégio de trabalhar em casa, ao lado da família e amigos. A pré-produção dos seus filmes - pesquisa, storyboard, roteiro, reunião com atores - eram realizados na sua residência, onde trabalhavam ainda seus assistentes de direção.
Apaixonado por xadrez, levava a estratégia do jogo para sua vida, às vezes com cautela, às vezes com agressividade. Correu riscos, mas sempre conscientemente.
Nascido em Nova Iorque, em 26 de julho de 1928, Stanley Kubrick viveu 40 anos na Inglaterra, onde morreu, em 07 de março de 1999. Seu pai, médico, tinha um laboratório fotográfico caseiro, no qual o menino Stanley fazia experiências. Esta foi a base para seu primeiro trabalho, como fotógrafo, iniciado aos 16 anos quando vendeu para a revista Look uma foto de um jornaleiro lamentando a morte do então presidente Franklin Roosevelt. Contratado pela revista, teve oportunidade de experimentar novas perspectivas de retrato. Entretando, seu interesse maior viria a ser pelas imagens em movimento.
A estreia de Kubrick no cinema foi com o documentário de curta duração Day of the Fight, em 1950. Após este trabalho, demitiu-se da Look e passou a dedicar-se inteiramente ao cinema. Em 1953, financiado pelo pai, que resgatou o seguro de vida para ajudá-lo, lançou o primeiro longa-metragem, Fear and Desire, sobre uma guerra fictícia. Mais tarde, Kubrick renegou o filme e o retirou de circulação. Uma das hipóteses é que ele tenha observado ser essa produção apenas um exercício de aprendizado de um jovem sem experiência e com pouco conhecimento cinematográfico.
O filme que acabaria por rejeitar, porém, foi "vitrine" para o cineasta autodidata e lhe garantiu um pequeno financiamento para A Morte Passou Por Perto (1955). Mesmo com poucos recursos para a produção, o diretor demonstra neste noir uma grande desenvoltura no uso da luz.
Um ano após, em parceria com o diretor James Harris, criou O Grande Golpe. O longa, além de ter tido sucesso comercial, tornou-se um marco, pela montagem inovadora. Dizem alguns críticos que O Grande Golpe foi a referência para a narrativa fragmentada de Pulp Fiction - Tempo de Violência, que Quentin Tarantino lançou em 1994. De fato, os filmes têm estruturas semelhantes. O de Tarantino virou cult, mas talvez não seja tão "genial" quanto seus admiradores acreditam...
Glória Feita de Sangue, de 1957, foi a produção seguinte de Kubrick. Ambientada na 1ª Guerra Mundial, retrata a relutância do coronel francês Dax, interpretado por Kirk Douglas, em acatar uma ordem para executar soldados da própria tropa, como "resposta" a uma operação fracassada. A cena final desse filme entrou para a galeria dos grandes momentos do cinema: a atriz alemã Christiane Harlan, que se tornaria esposa de Kubrick e o acompanharia até o fim da vida, faz uma cantora alemã que leva os soldados franceses às lágrimas com sua canção (veja aqui).
Por anos, Glória Feita de Sangue não foi exibido na França, com a justificativa de que denegria a imagem do exército nacional. Mas é uma produção memorável. Há outro trecho célebre estudado até hoje nos cursos de cinema, pela perfeição do movimento de câmera: o dos soldados franceses sendo atacados na trincheira (veja aqui). A câmera ora acompanha o coronel a caminhar pelo corredor escavado, por entre os soldados, ora assume o olhar do personagem. Na época, o travelling ainda estava sendo aprimorado. Kubrick, com a cena, deu uma bela contribuição para isso.
Em 1960, retomou a parceria com Kirk Douglas, em Spartacus, filme que também tinha no elenco Laurence Olivier. O épico teve boa aceitação de público e crítica e ganhou quatro Oscars. Mas Kubrick não estava satisfeito com a carreira. Ele se sentia incomodado por dividir o comando de seus trabalhos. Nesse longa, por exemplo, Kirk Douglas, também produtor, interferiu diretamente em todo o processo de filmagem.
Essa ingerência de outros acaba em 1962, com Lolita, em que todas as decisões envolvendo produção, direção e outros processos foram de Kubrick. A adaptação do polêmico livro de Vladimir Nabokov, também roteirista do filme, contudo, teve a estreia adiada por seis meses e foi remontado, porque a igreja católica o condenou como impróprio, um pecado para quem assistisse. Só não contou com a tradição das polêmicas de sempre aumentar a expectativa sobre o objeto em questão: Lolita acabou sendo sucesso de bilheteria.
Kubrick provocaria nova celeuma com seu filme subsequente, Dr. Fantástico (1964). A comédia, naquele período de Guerra Fria, satirizava o perigo de eclodir uma 3ª Guerra Mundial e fazia uma metáfora sobre as sutilezas do desconhecido sistema bélico dos EUA. Embora existam algumas falhas no roteiro (de Terry Southern), Dr. Fantástico traz uma ótima performance de Peter Sellers, representando três personagens caricatos, e expõe toda a habilidade de seu realizador na direção.
Após Lolita e Dr. Fantástico, Kubrick, já com o nome consagrado entre os maiores diretores do cinema, atingiu total liberdade criativa, com direito a tocar seus trabalhos sem interferência de estúdios e produtores.
Sinceros e ousados
O ex-fotógrafo Kubrick sabia que sua opção pelo cinema como profissão era arrojada, porém a mais sensata. Em depoimento para a rádio CBS, em 1958 (uma das poucas entrevistas que, como sabemos, concedeu), expôs o que pensava para o cinema e deu uma preliminar do que veríamos na sua obra, nos 40 anos seguintes: "Acho que se os poderosos respeitam filmes bons, ou as pessoas que os fazem, esse respeito é muito atenuado pela observação um tanto cínica de que filmes medíocres podem fazer tanto sucesso quanto filmes de maior valor. A televisão mudou isto completamente, e, apesar do colapso financeiro que provocou na indústria do cinema, acho que ela também trouxe um desafio muito estimulante, tornando necessário fazer filmes mais sinceros e mais ousados. Se faltam a Hollywood a cor e o entusiasmo de antigamente, os Rolls-Royces com assentos de pele de leopardo, por outro lado, acho que ela tem uma atmosfera entusiasmante de oportunidades e possibilidades para os jovens de hoje". Sua impressão de que Hollywood reconheceria seu trabalho se confirmaria mais tarde. Para esse reconhecimento, contribuiu também, é claro, o longa que sucedeu Dr. Fantástico em sua filmografia: simplesmente 2001 - Uma Odisseia no Espaço.
O projeto foi o mais ambicioso da sua carreira até então e o único que lhe rendeu, pessoalmente, um Oscar, o de Efeitos Especiais. De roteiro feito em parceria com o escritor de ficção científica Arthur C. Clarke, também autor do conto adaptado, The Sentinel, o filme de 1968 contou com consultores da NASA para a construção das máquinas, naves e ambientações. Se considerarmos que o homem ainda não conhecia bem as dimensões do universo espacial ao redor da Terra, pode-se dizer que nenhum filme de ficção científica foi tão futurista, acertando detalhes do que ainda não tinha sido descoberto. Pode-se dizer também que 2001 inaugurou um expediente hoje corriqueiro no cinema: utilização de música clássica como não apenas trilha de uma ação ou movimento, mas parte do conceito do filme. Não é possível imaginar as cenas da estação espacial sem a valsa Danúbio Azul, de Strauss, tocando (veja aqui).
Veio depois outro título que se tornaria de grande influência: Laranja Mecânica (1971), adaptação do romance de Anthony Burgess. Estrelado por Malcolm MacDowell e ambientado na Inglaterra, provocou a ira da sociedade britânica, que acusava Kubrick de incentivar a violência e denegrir a imagem de civilidade do país. Os jornais do período, inclusive, associavam ações criminosas ao filme. Após 61 semanas de sucesso, num ato inédito, o cineasta solicitou à Warner Brothers retirar a película de circulação dos cinemas ingleses, pois sua família recebera ameaças de grupos extremistas. Mais uma vez o diretor estava prenunciando, numa de suas histórias, algo que a sociedade ainda não havia percebido, ou não queria perceber: a doença silenciosa da violência urbana.
Após quatro anos, para acalmar os ânimos, Kubrick lançou a sutil superprodução Barry Lyndon (1975). O longa, vencedor de quatro Oscars, retorna ao século 18 de forma raras vezes vista em cinema de época. A iluminação, como de costume em Kubrick, é inventiva, com uso de luz natural e de velas, e os figurinos e a ambientação são ricamente compostos. Classificado como entediante pelos críticos da Inglaterra e dos Estados Unidos na ocasião de seu lançamento, hoje é percebido como um filme criativo e de técnica sofisticada, além de uma boa representação do cotidiano da aristocracia inglesa - embora pudesse, sim, ter uns 30 minutos a menos...
Das minúcias inglesas, o diretor partiu para o hoje clássico do terror O Iluminado (1980), igualmente uma adaptação, desta vez do best-seller do escritor Stephen King. A história de horror e suspense não-convencional tem Jack Nicholson interpretando um sujeito psicótico, que, com mulher e filho, recebe a incumbência de cuidar de um hotel fora de temporada e isolado pela neve. Algumas cenas do filme ficaram célebres. Uma delas é a do garotinho, em seu triciclo, encontrando no corredor vazio do hotel duas meninas gêmeas que teriam sido mortas no local (veja aqui). Fácil também é lembrar a (literalmente) alucinante atuação de Nicholson na cena em que, com um machado, destrói uma porta para tentar matar a esposa e o filho.
Se O Iluminado é um dos melhores filmes de terror já feitos, o longa que Kubrick dirigiu em seguida, Nascido Para Matar (1987), é uma das melhores produções de guerra já realizadas. Trata-se de outra adaptação - do romance The Short Timers, de Gustav Hasford, um veterano do Vietnã que colaborou também no roteiro. A ilustração do cotidiano dos soldados americanos desde o brutal treinamento até a chegada ao front se tornou um verdadeiro documento do que viveram os combatentes. Lançado doze anos após o fim da guerra, Nascido Para Matar é uma crítica apimentada de Kubrick ao desvario que foi a ida americana ao Sudeste Asiático.
O último título do grande cineasta, De Olhos Bem Fechados, foi finalizado no mesmo ano de sua morte, 1999. No filme, Kubrick entra no universo íntimo de um casal, vivido por Nicole Kidman e Tom Cruise, com uma trama de impacto psicológico, insinuações de traições e sexo. De Olhos Bem Fechados questiona e discute os limites das convenções matrimoniais e o relacionamento monogâmico, algo que, numa leitura rasa, pode parecer impensável vindo de Kubrick, tendo em vista sua discreta vida pessoal.
Por ser metódico ao extremo e muito preocupado com a pesquisa da história que queria contar, o realizador americano perdeu projetos ao longo de sua trajetória. Foi o caso do seu plano para um filme sobre Napoleão Bonaparte, abandonado após Waterloo, de Sergei Bondarchuk, ser lançado. Aryan Papers, uma história sobre judeus poloneses durante a 2ª Guerra, foi outra ideia que Kubrick deixou para trás. Pouco antes do começo das filmagens, Steven Spielberg estreou A Lista de Schindler, levando Kubrick a interromper o projeto, por achá-lo muito parecido. Spielberg, por sua vez, tocaria um roteiro que Kubrick deixou inacabado: o de A.I.: Inteligência Artificial, baseado num conto de ficção científica de Brian Aldiss. Kubrick percebeu que ainda não havia tecnologia suficiente para filmá-lo. Depois da morte dele, Spielberg reuniu os rascunhos e notas que o colega fizera e elaborou um novo roteiro. Pôs, é claro, a dedicatória "Para Stanley Kubrick" nos créditos do filme.
Hoje, treze anos depois da sua morte, Kubrick, como todo autor de uma obra clássica, ainda desperta curiosidade. Suas criações mostram o comprometimento com o fazer e pensar o cinema e estão cada vez mais atuais e notáveis pelas criatividade e originalidade. Cada produção sua abre espaço para muita discussão, e os críticos e acadêmicos sabem disso, pois as análises e teses sobre o cineasta não param.
Por ter vida pessoal fechada e se refugiar em seu lar para produzir seus filmes, os jornais o adjetivavam de excêntrico, mal humorado, grosseiro com as mulheres e desperdiçador de recursos financeiros. À parte as "famas" que lhe davam, nos bastidores era considerado um sujeito dócil e de apenas um intuito - contar uma história com qualidade, sempre de um modo que outros diretores não idealizariam. Faz falta.