Aproveitando as férias (e uns dias nem tão agradáveis de resfriado), acabei assistindo a alguns dos principais filmes da temporada. Então não resisti e anotei rápidos comentários sobre cada um deles. Entre altos e baixos, certo é que o Oscar terá dificuldades em fazer suas escolhas, pois a safra é das melhores e mais diversificadas dos últimos anos.
Coringa
A principal qualidade do filme é focar a gênese e a evolução do psicopata Coringa sob uma perspectiva constrangedoramente realista. Põe por terra quaisquer mitos segundo os quais psicopatas (dos mais leves aos mais perigosos) nascem psicopatas. Alguns até podem, mas a maioria se cria. A aura quadrinesca e gótica dada pela fotografia, direção de arte e ótima trilha sonora suspendem esse realismo factual numa atmosfera envolvente e íntima. O roteiro é bem amarrado – talvez incomode o fato de ser demasiado esquemático no que diz respeito às causas do Coringa, uma certa necessidade de explicar tudo com um quê psicológico. Mas a atuação impressionante de Joaquim Phoenix vai além de qualquer clichê, seu Coringa é um ser autêntico e vivo, humanamente abominável e digno de piedade.
História de Um Casamento
É injusta a desmedida das comparações suscitadas entre o cinema de Noah Baumbach e o de Woody Allen. As semelhanças ele não esconde: Nova York, um casal de artistas em processo de ruptura, diálogos espirituosos, senso de humor e drama low-profile. Mas é certo que Baumbach não é Woody Allen e nesse filme isso fica claro. O roteiro é muito bom, os diálogos bem escritos e transpostos em intepretações de alto nível. A cena da discussão do casal é o ponto alto e está no lugar certo do roteiro: vem como liberação depois que toda possibilidade de diálogo se perde entre os dois. A escolha por dividir os personagens entre Los Angeles e Nova York traz um comentário político inteligente e cheio de ironia, que pontua toda a narrativa, outro belo acerto do diretor.
Parasita
Da mesma onda de filmes como Corra!, de Jordan Peele, que tratam com inteligência questões delicadas da atualidade. No caso de Peele, o racismo. Aqui, as diferenças entre classes sociais e o ódio que jaz sob as aparências. Parasita é rápido, divertido, inteligente e seus personagens transpiram ambiguidade. A grande habilidade de Bong Joon-ho é mostrar que ninguém vale muito a pena, maldades e defeitos não são de todo injustificados. Ele varre o panfleto para o espaço e apresenta a alma humana de maneira crua, se bem que estilizada. Ir até as últimas consequências na expressão desse ódio, como está na moda, pode não ser a melhor opção dramática. Mas esse tipo de catarse tem funcionado com o público de hoje, talvez ávido por um coliseu onde gritar (ou ver simbolicamente vingadas) as suas frustrações.
Era Uma Vez Em... Hollywood
O filme mais fraco, e talvez mais superestimado, dos últimos Tarantinos, confirmando que a marca (do diretor, do elenco e do estúdio) tem influência cativa nas principais indicações e premiações americanas. É claro que o filme funciona e diverte, tem muitas sacadas boas, sobretudo a escolha da época e do lugar, essa Hollywood que adentra os anos 1960, com todas as suas transformações culturais. Mas o roteiro está longe da engenhosidade de Bastardos Inglórios e Django Livre, como a atuação de Di Caprio, que não justifica tanto alarde. O mérito mesmo é de Brad Pitt, que está genial no papel, lembrando seus áureos tempos. Para não ser injusto, o filme ganha vida em seus 20 minutos finais. É alguma coisa, mas é pouco para tanto estardalhaço.
Dois Papas
Melhor dos filmes de Fernando Meirelles, não pela técnica, que em Cidade de Deus dá um banho, mas pela discussão de questões morais bastante pertinentes. Acertada opção de direção numa câmera íntima a seguir seus protagonistas, dois atores fenomenais em cena. Com o ótimo roteiro nas mãos, eles fazem o filme fluir com bons momentos de humor e tensão alternados. Incomoda, como sempre, a câmera forçosamente documental de César Charlone e a opção por uma fotografia lavada, com textura – ruim – de televisão. A edição está mais calma, mas continua lançando mão de trechos clipados, ao estilo publicidade, como conectores da narrativa. Isso às vezes funciona e até diverte, noutras cai no vazio e irrita. Mas a trilha, o elenco e o senso de humor valem o ingresso.
O Irlandês
Lento e longo demais. Entre os motivos, a falta de energia de algumas cenas, a falta de assunto noutras e o mais do mesmo do roteiro como um todo. Fica claro que a celebração como obra-prima do momento é mais em respeito à carreira sem dúvida brilhante de Martin Scorsese do que pelo filme em si. Pois O Irlandês é apenas um remake fraco de Os Bons Companheiros e, se o que nele importa é a reflexão sobre o transcorrer do tempo e o acerto de contas com a velhice, perde muito em profundidade para obras como O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola, para ficar num exemplo. A história é relevante e o filme tem sua marca indiscutível de personalidade. Mas o vigor da narrativa acaba abalado pela falastranice e pouco investimento visual. As cenas de ação carecem de dinamismo e inventividade. Se é para curtir Scorsese, melhor não perder tempo e ir direto na origem.
Meu Nome É Dolemite
Retorno de Eddie Murphy ao cinema, adaptando a biografia de Rudy Ray Moore, figura genial da cultura popular negra norte-americana, um quase desconhecido do grande público, sobretudo hoje em dia. A primeira metade engata aos poucos, traz o aspirante a stand up em sua relativa ascensão como Dolemite, personagem desbocado que conquista sua fatia entre o público negro. Mas é na segunda parte que o filme dá uma reviravolta sensacional: obstinado por levar Dolemite para Hollywood, ele aposta na realização de seu primeiro filme. Sem conhecimento, sem recursos e com equipe improvisada, Ray Moore protagoniza sequências absurdas e hilárias, misturando palavrões com kung-fu, e assim se torna um verdadeiro cult do segmento. Segundo consta, o estilo Dolemite seria precursor do rap, o que não é para se duvidar.
O Farol
Visualmente impecável, com enquadramentos milimétricos em assombroso preto e branco, o filme traz ainda duas interpretações de fôlego e a melhor delas nem é de Willem Dafoe. Mas o curso da narrativa pode decepcionar. Anda rápido para uma contemplação mais demorada e às vezes se enrola. Em torno disso, o diretor Robert Eggers, conhecido por filmes de terror, abusa dos recursos técnicos, carrega numa boa trilha sonora que, no entanto, não conhece pausas nem silêncios, e prolonga uma violenta tempestade para além do necessário. Porém, ele acerta no jogo que confunde realidade e fantasia, espelhando os personagens, e com isso tira o melhor do roteiro: as diferenças entre os dois irrompem numa investigação sobre o isolamento e a sanidade. Se saísse da moda, deixando o terror de lado, seria um filmaço.
1917
Surpreendente peça de guerra de Sam Mendes (Beleza Americana), com trabalho fotográfico extraordinário de Roger Deakins (Blade Runner 2049). Confirma a máxima de que o minimalismo, quando empregado de maneira adequada, multiplica a potência da obra. É o que acontece aqui. O roteiro é básico: um soldado imbuído da missão de entregar uma mensagem durante a 1ª Guerra Mundial. A forma, idem: a câmera segue o personagem em real-time, emulando uma grande sequência sem cortes. Momentos de tensão e confrontos se alternam com esperas e avanços numa experiência imersiva que lembra um pouco os videogames da atualidade. A solidão do personagem e a do espectador se encontram no jogo da guerra, cujo horror se descortina quase sem palavras, pelas visões de um impactante trabalho de direção de arte e coreografia.
Muriel Paraboni
Artista visual, roteirista e diretor de cinema, autor do curta-metragem Entardecer (2016).