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    O que estou lendo


    A revista Veja mantinha, anos atrás, uma seção intitulada “O que estou lendo”, em que personalidades de diversas áreas revelavam qual era o livro que freqüentava as cabeceiras de suas camas naquele momento. Em um parágrafo. Sem aprofundamento, sem intenção de se fazer grandes análises, políticos, empresários, artistas e intelectuais comentavam as obras que “estavam lendo” e das quais extraíram alguma informação ou idéia relevante. Numa semana, lá estavam o diplomata Afonso Arinos de Mello Franco, lendo “Cartas do Pai”, de Alceu Amoroso Lima; o skatista Bob Burnquist, lendo “Rota 66”, de Caco Barcellos; e a antropóloga Lilia Schwarcz, lendo “Um Rio Chamado Atlântico”, de Alberto da Costa e Silva. Na outra, estavam a atriz Juliana Silveira (quem?), o cientista político Sérgio Paulo Rouanet e a apresentadora Marina Person a revelar suas leituras: respectivamente, “Férias!”, de Marian Keyes, “Cidadania no Brasil”, de José Murilo de Carvalho, e “A Mulher Carioca aos 22 Anos”, de João de Minas. E assim o negócio ia.

    A seção não era nada de mais, era uma ‘perfumaria’ dentro da Veja, mas, admito, eu a lia sempre (o quê? Meu rosto está enrubescendo?...). Sempre achei legal a idéia de fazer um mapeamento do que as pessoas andam lendo, sem pensar que tal mapeamento está nas listas de mais vendidos publicadas nas revistas semanais. Queria, despreocupadamente, perguntar a pessoas não quais os últimos livros que compraram, mas os que leram e pelos quais não passaram incólumes. Pois bem. Fi-lo.

    Sei que esse texto pode não parecer denso, mas nem sempre eu sou denso. Também sei que muita gente se irrita com essas enquetes do tipo “o que você está lendo”, “qual foi o último filme que você viu”, etc. Muitas também me irritam. Mas nada me impede de, às vezes, ocupar este espaço que tenho aqui no MM com textos descompromissados. É prazeroso comentar nossas leituras do momento? É. Então, foi por isso mesmo. Pelo prazer, me dirigi a três contatos meus, de diferentes idades e atividades profissionais, e fiz a clássica pergunta: “o que você está lendo?”. O que eles responderam, apresento agora.


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    No final de maio, quando fiz aniversário, minha pilha de livros na cabeceira da cama aumentou consideravelmente. A vontade era de ler todos os novos livros imediatamente, mas a escolha foi inevitável. Comecei, então, por “O Conto do Amor”, estréia de Contardo Calligaris no romance (Companhia das Letras, 2008, 124 p.). Com uma forma de escrever bastante envolvente, o psicanalista e colunista da Folha de S. Paulo narra a história de um rapaz a partir de uma revelação que escuta de seu pai. Pouco antes de morrer, o pai diz que, em outra vida, teria sido ajudante do pintor Sodoma (1477-1549), autor de afrescos no convento de Monte Oliveto Maggiore, na Itália. O que no início parece ser apenas um delírio revela-se, aos poucos, uma trama complexa que envolve vários relacionamentos pessoais. Tem sido difícil parar de ler e um ótimo entretenimento depois da leitura de tantos trabalhos de final de semestre dos meus alunos."

    - Thaís Furtado, jornalista e professora universitária

    Atualmente estou lendo um livro técnico para ministrar minhas aulas de Comportamento Organizacional: “Dinâmicas e Jogos na Empresa”, de Roberto Luperini. Trata-se de um apanhado de jogos e dinâmicas de grupo, como o próprio nome sugere, mas com técnicas diferenciadas para uso em desenvolvimento de pessoal. Demonstra como a dramatização e a música, aliadas ao auto-conhecimento, combinam muito bem para a produção de conhecimentos e insights a respeito de temas como liderança, comunicação, senso de equipe, criatividade e inovação.

    Diogo Roehrs, administrador de recursos humanos e professor

    Estou lendo Platão, direto. Os diálogos de Platão, pra ser mais exato. Ontem, terminei o “Górgias”, que trata sobre retórica e política. Toda essa leitura tem a ver com a montagem de “O Banquete”, adaptação do Donaldo Schüller, minha direção teatral de 2009.

    Luciano Alabarse, diretor de teatro e coordenador do festival Porto Alegre em Cena

    E, antes que alguém pergunte, este que vos escreve andou lendo uma das mais festejadas obras literárias do século XX: “A Insustentável Leveza do Ser”, do tcheco Milan Kundera. Há muito eu vinha adiando a leitura desse livro, por motivo que não sei identificar (Freud, cadê você?). Mas isso não vem ao caso. Li-o, finalmente, e posso afirmar que “A Insustentável Leveza do Ser” representa um grande momento da literatura ocidental. É um romance de muita densidade, com personagens complexos e cheios de ambigüidades, impossíveis de serem reduzidos a uma ‘característica principal’, sob pena de diminuir a importância de todas as outras. O médico Tomas, a fotógrafa Tereza, a artista plástica Sabina e o professor Franz se relacionam na Praga de 1968, período em que a então Tchecoslováquia – na época um país comunista, ‘satélite’ da Rússia – estava inquieta politicamente. O motivo da agitação era o movimento liberalizante promovido pelo governo de Alexander Dubcek, que entrou para a História como a “Primavera de Praga”: apoiado pela população, o governo tcheco propunha um “socialismo com face humana”, sem autoritarismo, com liberdade de expressão e de pensamento e respeito aos direitos civis. Para os russos, contudo, essa ‘rebeldia’ era inaceitável. Em agosto de 1968 (há 40 anos, portanto), tanques e soldados soviéticos invadiram a Tchecoslováquia e restauraram a linha-dura comunista no país. Milan Kundera usa, então, a problemática da invasão russa e a repressão política subseqüente para refletir sobre opressão e liberdade, sobre lealdade e traição, sobre o peso (ou a leveza) de nossas escolhas. O autor, num interessante estilo narrativo, permeia o texto do romance com vários comentários de teor filosófico, com que examina as atitudes de seus personagens. Logo nos primeiros capítulos, cita a idéia do Eterno Retorno, de Nietzsche, e a discussão sobre a Leveza e o Peso, feita por Parmênides.

    Alguns trechos do livro, vi-me obrigado a ler em voz alta, de tão saborosos que eram. Como este aqui*:

    Tomas estava desesperado e com dor de estômago. Dormiu muito tarde. Alguns instantes depois, Tereza acordou. Os aviões russos ainda voavam no céu de Praga e se dormia mal com aquele barulho. O primeiro pensamento dela foi: ele voltara por sua causa. Por sua causa, havia mudado de destino. Agora, não era mais ele o responsável por ela; de agora em diante, ela era responsável por ele. Aquela responsabilidade lhe parecia acima de suas forças. Depois se lembrou: ontem, ele aparecera à porta do apartamento e, alguns instantes depois, numa igreja de Praga soaram seis horas. A primeira vez que se encontraram, ela terminara o serviço às seis horas. Via-o diante de si, sentado num banco amarelo, e escutava o badalar dos sinos. Não, não era superstição, era o senso da beleza, que de repente a libertava da angústia e a enchia de um desejo renovado de viver. Mais uma vez, os pássaros dos acasos haviam pousado nos seus ombros. Tinha lágrimas nos olhos e estava infinitamente feliz por ouvi-lo respirar a seu lado.

    *(p. 98, edição da Companhia das Letras)

    Que ótimo, hein?

    Tudo em “A Insustentável Leveza do Ser” se encaixa, tudo tem a ver, nada é por acaso. A narrativa é muitíssimo bem construída. Grande obra (o também grande Paulo Francis comentou em texto de 1989 que Kundera fazia ‘subfilosofia’ e que não conseguira ler o livro até o fim. Tem o direito...). Lançado em 1984, “A Insustentável Leveza do Ser” foi adaptado para o cinema em 1988, com direção do americano Philip Kaufman e com Daniel Day-Lewis e Juliette Binoche no elenco.

    E você, leitor, o que você está lendo? Deixe sua mensagem aqui embaixo, no “Comente este texto”. Será um prazer lê-la.


    lucas colombo assinaturaLucas Colombo

    Jornalista, professor, colaborador de revistas e cadernos de cultura, editor do Mínimo Múltiplo, organizador do livro "Os Melhores Textos do Mínimo Múltiplo" (Bartlebee, 2014).


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