Uma pergunta, caro leitor: quantas vezes e de quantas bocas você ouviu, nos últimos tempos, a frase “Obama é o Lula americano”? Muitas, crê este pobre colunista. Como escreveu o grande Machado no capítulo 23 de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Reparando bem, há aí um lugar-comum” (nosso autor maior sempre “resolve em mim tantos enigmas”, para citar Drummond). E um lugar-comum dos grandes, por sinal. Desde a ascensão do novo presidente americano, no ano passado, os por aqui mui benquistos senhores Senso Comum e Politicamente Correto, produtores eficientes de chavões, têm insistido, sem parar para respirar (e pensar), na comparação entre Barack Obama e o seu homólogo brasileiro. Afinal, ambos teriam trajetórias políticas e características pessoais “muito semelhantes”. “Alegres”, “comunicativos” e “simples”, Obama e Lula seriam “lutadores” que representam a “fatia marginalizada” da população de seus países e, com suas eleições, “fizeram a esperança vencer o medo”, etc etc. Além disso, o fato de Obama ter se referido a Lula como “o cara”, na última reunião do G-20, em Londres, provaria cabalmente que ele se identifica com o colega daqui. E por aí vai.
Assessores e ministros de Lula, é claro, também já compararam o chefe a Obama (e o próprio Lula também se comparou), e até alguns jornalistas políticos, que deveriam, assim como todo profissional de imprensa, desconfiar de uma ideia feita e ir atrás dos outros lados da mesma questão, têm feito eco à maioria e afirmado que, puxa, é mesmo, Obama lembra Lula. É muito divertido ouvir tudo isso, mas é preciso que se diga: equipará-los não tem cabimento. Pessoal e politicamente, Obama e Lula nada tem a ver um com o outro. Novo parágrafo e explico.
Como todo lugar-comum, essa ideia (sem acento agudo, mesmo) de que Obama é “o Lula dos Estados Unidos” não resiste a uma análise mais aprofundada. São várias as diferenças entre os dois políticos. Para começar, Obama é advogado formado por uma das maiores universidades do seu país, Harvard. Conhece profundamente a História dos EUA, é leitor voraz, já publicou livros e já deu aulas. Difere-se de Lula também por não ter passado a vida inteira afirmando uma coisa e, chegando ao poder, ter feito outra. Além disso, nunca foi partidário do socialismo e, mesmo com a pesada intervenção governamental feita na economia em crise de seu país, não vê um estado gigante, que suga impostos, emprega centenas de militantes, gera inflação e dificulta o empreendedorismo, com bons olhos.
A história de que Obama, assim como Lula, representa “os marginais da nação” também não cola, pois onde ele obteve mais votos foi nos estados do norte dos EUA, mais ricos e desenvolvidos. O presidente americano, ainda, convive bem com críticas e jamais tentaria expulsar jornalistas de seu país ou, tal um líder populista, colocar o povo contra a imprensa, como fez Lula. Obama também nunca diria que manter caixa dois em campanhas eleitorais, por ser prática “sistemática”, é aceitável. Novamente ao contrário do presidente brasileiro, assumiu que “pisou na bola” na nomeação de alguns assessores envolvidos em irregularidades com declaração de impostos. Não disse que “não sabia de nada”, admitiu que errou e pediu desculpas. Lula fez isso em relação a ministros acusados de corrupção?
Outra qualidade de Obama, não compartilhada por Lula, é fugir a pensamentos binários. Como já comentei, nosso presidente insiste em dividir o Brasil em dois: trabalhadores humilhados X elite preconceituosa. Obama, não. Ele não fragmenta seu país, muito pelo contrário. Lembram-se do discurso que o revelou aos EUA e ao mundo, na convenção democrata de 2004, quando ele afirmou não ver uma “white America” e uma “black America”, mas apenas os Estados Unidos da América? Obama não se fixa nessa lógica “guerra fria”, lógica “anos 60”, porque tem consciência de que os tempos atuais pedem visões de mundo mais complexas. Sabe que há vários outros números entre o 8 e o 80. É, mais uma vez, o oposto de Lula. Ou o presidente não demonstrou estar com a cabeça ainda nos anos 1960 ao comentar, recentemente, que a crise econômica era resultado da ação de “gente branca, de olhos azuis”, que “negros, índios e pobres” são as maiores vítimas dela e que as mazelas da América Latina e da África vêm da exploração dos países ricos? Há vários banqueiros negros nos EUA, japoneses e europeus também têm sofrido muito com a crise e já faz tempo que os países latino-americanos não são mais colônias de exploração e escolhem seus líderes sem ingerência externa... Que os países ricos têm culpa pela crise, parece óbvio. A situação, porém, é mais intrincada, e analisá-la sob uma ótica racista é uma sandice – que Obama não faria.
O quesito “gafes”, a propósito, também contribui muito para deixar Lula a quilômetros de distância de Obama. O americano é um homem articulado, elegante ao falar, e nunca disse uma bobagem monumental. Nessa área, Lula se parece mais é com George W. Bush. Tanto ele como o ex-presidente (saudades?) republicano maltratam seus idiomas pátrios, cometem uma gafe atrás da outra, têm ideologias estreitas e mostram dificuldades para lidar com perspectivas diferentes das suas. (A comparação entre Lula e Bush parece mais pertinente do que entre Lula e Obama...).
Mas, ok, vamos à tão falada distinção feita por Mr. President no último encontro do G-20. Muitos bradaram que o fato de Obama ter se referido a Lula como “o cara”, “o político mais popular da Terra”, sinalizaria que ele se reconhece em Lula, se identifica com o brasileiro, e patati patatá. Bem, o democrata certamente sabe quem é o político mais popular do mundo, e se chamou Lula de “my man” não foi por “se identificar” com ele. Foi por bons e velhos motivos políticos. Como é parte de seus planos reverter a imagem negativa que sua nação cultivou internacionalmente durante o governo Bush, Obama procurou ser simpático, “natural”, e conquistar a amizade do presidente do maior país da América Latina – no que manda mensagem amigável para uma região onde os EUA não gozaram de prestígio nos últimos anos. Aliás, o próprio Bush mantinha bom relacionamento com Lula, como busca de contraponto à imagem de “demônio imperialista” pintada pelo venezuelano Hugo Chávez. Chamar Lula de “o cara” no G-20 foi um gesto de relações públicas. Com cada líder internacional presente no encontro, Obama se portou de modo distinto. Naquele momento de descontração, poderia ter dispensado tratamento de “parceiro”, de “meu chapa”, a Gordon Brown, Nicolas Sarkozy, Hu Jintao ou qualquer outro. Se escolheu Lula, foi porque viu no brasileiro, um bonachão, o sujeito ideal para isso. Nosso Guia (como diz Élio Gaspari), afinal, sempre procura transmitir a imagem de desprendimento, de ser ‘do povo’, de estar ‘de bem com a vida’. Obama aproveitou essas peculiaridades de Lula para ficar bem na foto e passar uma ideia de humildade, de leveza. Marketing político. E só. O “elogio” do presidente americano ao brasileiro, por sinal, colaborou para que os holofotes do encontro do G-20 se voltassem ainda mais para ele. O “cara” do evento foi Obama, não Lula.
Como bem já observou, sobre o novo ídolo político dos EUA, a colunista Dora Kramer (do Estadão), “o verdadeiro astro é aquele que sabe atrair a luz por gravidade”. Obama chama atenção por méritos próprios, por suas qualidades pessoais e políticas, e não, como Lula, por exaltar a si mesmo, fazer-se de coitadinho, jogar a culpa das mazelas nacionais sobre a elite, ficar irritado com críticas e usar vocabulário inadequado à posição de chefe de estado. A comparação entre eles, realmente, não se sustenta. Obama, sim, é “o cara”; e Lula? Lula perde. Os clichês também.
Classic Movies
Que saudade! Essa seção do blog volta a ser atualizada, e o filme da vez é “Doutor Jivago”, de David Lean. Não deixem de ler e comentar.
Farra das passagens
A leitura da obra mais conhecida de Raymundo Faoro nunca se fez tão urgente.
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Lucas Colombo
Jornalista, professor, colaborador de revistas e cadernos de cultura, editor do Mínimo Múltiplo, organizador do livro "Os Melhores Textos do Mínimo Múltiplo" (Bartlebee, 2014).