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    Português (politicamente) correto?


    Viver fazendo referências a Paulo Francis faz-me incomodar muita gente. Certa vez, um leitor, que não se identificava no email, mandou-me texto espinafrando-o, com a mesma deselegância pela qual o autor dos “Diários da Corte” deixava-se tomar em dados momentos (uma conduta justifica a outra?). Talvez achasse o anônimo que, por salientar as qualidades de Francis como jornalista e intelectual, eu não conhecesse seus defeitos. Mas admiro Francis pelas razões certas. Ele transmitia sua grande bagagem cultural por meio de uma redação coloquial e solta, acessível a todos, e exprimia suas opiniões de modo contundente e irônico, afiado, sem medo de dizer o que pensava – atitude rara nesse cordial Brasil, em que o consenso é mais valorizado do que o dissenso.

    Francis, morto em 1997, tinha, além disso, a capacidade (e a coragem) de, feito seus amigos e também mestres do jornalismo cultural Daniel PizaRuy Castro e Millôr Fernandes, ir de encontro ao que, nas últimas décadas, se convencionou chamar de “politicamente correto”: aquele amontoado de clichês vindos do feminismo, do marxismo, do cristianismo e de outros “ismos” que as universidades americanas, à medida que a Guerra Fria terminava e as ‘grandes’ ideologias políticas caíam de podres, trataram de exportar ao mundo como um conjunto de posturas ‘apropriadas’ em relação a minorias. Tal “onda”, você já sabe, nos brinda até hoje com eufemismos hipócritas do tipo “afro-americanos”, para se referir a negros; “moradores em situação de rua”, para mendigos; “creche geriátrica”, para asilo de idosos; “gênero” feminino, no lugar de “sexo” feminino, etc. etc. Igualmente, trouxe para as rodas de discussão ideias (sem acento agudo, mesmo) com as quais todos já nos deparamos um dia: “homem deve, e tem aptidão inata a, fazer absolutamente tudo o que a mulher faz no cuidado com os filhos: ninar, dar mamadeira, escolher a roupinha, etc.”, ou “fazer piada com gays, mulheres e pobres é falta de respeito”, ou “toda idade tem sua beleza”, ou ainda “não fale mal do Big Brother, do Diário Gaúcho e de música popneja ou funk carioca: o povo gosta, e daí?”. É tudo, como bem humoradamente constatou o site inglês Butterflies and Wheels, uma imensidão de bobagens, que, a despeito da boa intenção inicial, mais cerceiam e fossilizam as questões do que contribuem para que evoluam através de um verdadeiro debate de idéias. E Francis era por tantos odiado em grande parte devido a isso, porque, embora com aquele seu estilo sem meios-tons, desconfiava da “onda” e não se deixava conduzir por ela. Frases suas quais “É preciso ter mingau na cabeça para acreditar em astrologia” ou “Quando ouço falar em ecologia, saco logo meu talão de cheques” despertavam a fúria da tropa dos politicamente corretos. A mesma que, aqui no Brasil, possui como um de seus mais eloquentes chavões o de que “não se pode criticar alguém por não falar ou escrever bem o Português”. Pois é a tal pensamento que quero, em especial, me remeter – depois deste longo, mas necessário, preâmbulo.

    Quero discutir essa noção porque, atualmente, a língua portuguesa está, “nessepaís”, tão maltratada quanto a paciência de quem acompanha política. Por todo canto, encontra-se gente que comete erros de concordância (“A maioria das pessoas não estão...”), que conjuga mal um verbo (“O que tu dissesse mesmo?”), que pronuncia mal ou incorretamente palavras (“A situação era tão rúim, que entrei em disispero – ou seje, fiquei muito aflito”). Fora quem esquece que existe algo chamado “plural” (“Já arrumei as cadeira”) ou se entrega ao gerundismo (“Vou estar passando sua ligação...”) e a modismos (“Na real, o que ele afirmou foi...”). Fazer rodeios com o sujeito da ação, na linha “O Papa Bento 16, ele fez um apelo para...”, quando se poderia dizer diretamente “O Papa Bento 16 fez um apelo...” é outra mania irritante, verificada hoje. E há mais itens na lista de vícios de linguagem e de atentados ao idioma: “Estou meia nervosa” (está nervosa da cintura para cima? No sentido de “um pouco”, o certo é “meio”), “A tarefa é para mim fazer” (mim conjuga verbo? Só para índios: “mim querer”, “mim fazer”... o correto é “para eu fazer”), “Há dez anos atrás” (redundância. O “há” já indica que o tempo passou, que está ‘atrás’), “A cada dia que passa” (também redundante. Todo dia passa), “Vou no supermercado” (a regência do verbo “ir” pede a preposição “para” ou “a”), “Antes de mais nada, queria dizer...” (entende-se que a pessoa vai parar de falar em vez de começar, porque depois do que disser virá “mais nada”). Poderia citar outros tantos.


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    Mas onde entra o politicamente correto nessa questão? Onde houver alguém que ouse reclamar.

    Queixar-se de quem comete erros de português, para os adeptos brasileiros do politicamente correto, denota, além de “preconceito”, ainda “elitismo” – é o retalho marxista do pacote definido no início desse texto. Seria, conforme tal ótica, uma aversão às classes “menos favorecidas”, aos “excluídos”, que “se comunicam do jeito que podem”. Ora, isso é uma enorme besteira. Em primeiro lugar, o fato de alguém defender o vernáculo não quer dizer que esse alguém odeia as classes C, D e E. Em segundo, falar e escrever direito não é exclusividade de quem é rico e tem diploma de curso superior. Já ouvi pobre falando sem comer nenhum “s” no final de palavras no plural, assim como já ouvi rico usando o pronome relativo “onde”, que só indica lugares, em referências de tempo, como em “o ano onde meu filho nasceu” (para tratar de tempo, o correto é “em que”, “no qual”, “quando”). Que certos indivíduos nem saibam o que é língua portuguesa porque realmente nunca tiveram oportunidade de estudar é perfeitamente compreensível. A discussão sobre correção linguística nem chega a esse grupo. O que não parece razoável é que pessoas que passaram por uma escola e têm televisão, aparelho de som e computador em casa não apresentem o menor cuidado no trato com o idioma, nem se importem com isso. E achar que corrigir o português dessas pessoas é humilhá-las, menosprezá-las, em vez do contrário, também não é razoável. Esta é outra bobagem politicamente correta. Eu já pedi a próximos que atentassem para determinados erros que cometiam ao falar, e hoje eles não os cometem mais. Corrigir também é educar, e quem tem maturidade sabe que não há nada de humilhante nessa atitude. Pelo contrário: chama-se a atenção para um erro que uma pessoa comete porque se sabe que ela pode melhorar.

    Igualmente bobo, e politicamente correto, é encarar a defesa da leitura como “elitismo cultural”, como – outra vez – “preconceito” em relação a quem não toca em livros. Desculpem-me, mas esse argumento é que soa preconceituoso, porque pressupõe que apenas gente com dinheiro para gastar na livraria teria hábito de ler... A quem vem com essa lengalenga para cima de mim, sempre conto uma singela e breve história: tempos atrás, no interior do estado, conheci uma senhora que, todo mês, retirava um livro na biblioteca pública da cidade para ler. Dizia adorar Erico Verissimo. Sua profissão? Empregada doméstica. Formação? Ensino fundamental. Que mulher “elitista”, não?...

    Já houve quem me dissesse: “Lucas, você não pode reclamar do português dos outros e exigir que todos tenham a mesma relação com o idioma que você, jornalista cultural, tem”. Mas eu não estou exigindo que tenham. Desejar ver a língua portuguesa adequadamente empregada não significa que, para mim, todos precisam ser MachadoEuclidesLimaPessoa ou Eça (mas como é bom ler esses caras...). Só não vejo incompatibilidade entre usar, no cotidiano, uma linguagem acessível, simples, e, ao mesmo tempo, zelar pela sua correção e clareza. Assim é bem mais agradável, para todos. Basta um pouco de boa vontade. E o vernáculo, já tão bem tratado por sujeitos como os citados acima, agradece por não apanhar.

    Ninguém é aprovado em entrevista de emprego se não falar com correção. Ninguém passa no vestibular, ou em algo tão apreciado aqui em Pindorama, o concurso público, se não conhecer, pelo menos, normas básicas da língua. Ao defender tolerância extrema com os socos no idioma, o politicamente correto, sem querer, acaba contribuindo para o que tanto procura combater, pois, cometendo erros de português, aí sim que o indivíduo corre riscos de “exclusão social”... É preciso cuidar da língua, sim. Sem paranoia, sem purismos, sem exageros (falar “chegar em” em vez de “chegar a”, por exemplo, não é tão horrível assim), mas cuidar. Se não existir um mínimo de regras, emerge o caos. E esse não é um “argumento opressor”, não. Para lembrar novamente o mestre Millôr, ele já afirmou que “Se não houver norma não há como transgredir. A língua tem variantes, mas temos de ensinar a escrever o padrão”. Não ver problema em falar ou escrever erroneamente é fazer o elogio da ignorância. Língua também traz cultura e história em si. Não é só uma simples ferramenta de comunicação, que pode ser utilizada de qualquer maneira, sem que ninguém proteste. Pensar desse jeito é empobrecê-la. Assim como empobrece o pensamento rezar pela cartilha do politicamente correto. O Francis, se vivo estivesse, faria um sonoro pfui para essa turma...

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