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    Ética a Internauta


    Se é verdade que a internet aumentou bastante o espaço para informação, debate e mobilizações, também é verdade que ampliou bem mais o do lugar-comum, do palpite e da insensatez. É quase inacreditável a quantidade de tweets e posts destinados a defender o indefensável, baixar o nível de uma discussão com ataques pessoais ou radicalismos e carregar opiniões infundadas (sem falar nos maus tratos à língua portuguesa, mas essa é outra história). “Não se pode atribuir o problema à tecnologia, mas o fato é que ela facilita”, escreveu certa vez, sobre a questão, o jornalista e crítico Daniel Piza (1970-2011). As pessoas, obviamente, dizem bobagens também “fora” da internet, mas as redes sociais estimulam e favorecem suas emissão e circulação.

    A pergunta “No que você está pensando?”, exibida continuamente ali, no cabeçalho do Facebook, é um convite à fala impulsiva, superficial e preconceituosa. Aliás, não são raros os casos, por exemplo, de comentários racistas ou antissemitas nas redes, motivados, em boa parte, pela necessidade do ser humano, esse gregário, entrar rápido e de qualquer maneira no tema de que todos estão falando. É preciso, pois, muito autocontrole para não divulgar a primeira coisa que vem à cabeça, simplesmente revelar no que se está pensando, uma vez que – obviamente, de novo – nem todos os pensamentos são dignos de consideração ou publicação. Há, inclusive, uma história divertida sobre Albert Einstein. Perguntado se costumava anotar as “boas ideias” que lhe surgiam, respondeu: “Não, até hoje eu só tive uma boa ideia”. Se ele, que era gênio, achava isso...

    O que se tenta fazer a seguir é, justamente, discutir (não responder de modo absoluto, é claro) algumas ideias feitas e atitudes que povoam a internet, com base em noções de ética e nos próprios bom senso e lógica, valendo como uma recomendação de parcimônia diante do teclado do computador. A ênfase é em tópicos políticos e culturais.


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    “O partido político do qual discordo já se envolveu em casos de corrupção. Isso justifica os atos de corrupção do meu partido, ou ao menos diminui a gravidade deles”.

    Esse é um caso típico de raciocínio capcioso. Basta ler o índice de um livro de ética para saber que uma conduta errada não justifica outra. Seu adversário comporta-se mal? Eis um belo motivo para você se comportar bem. O antropólogo Roberto DaMatta já declarou: “Ética é você dizer não a você mesmo”. Pensar que um crime está desculpado porque foi cometido também por outros não é correto. O império da lei vale para todos: amigos e inimigos, pessoas próximas e distantes. Corrupção não anula corrupção. Raciocinar nesses termos seria o mesmo que acreditar não haver nada de mau em assaltar pois Ronald Biggs também assaltou, ou que não é grave matar alguém porque Anna Jatobá também matou.

    “O fato de um condenado por um crime ter uma vida modesta e um passado de luta política torna injusta a pena que lhe foi imposta”.

    É um sofisma largamente difundido por admiradores do ex-deputado José Genoíno, condenado pelo mensalão. A Justiça, porém, decide sobre desvios específicos, não sobre vidas inteiras. A própria ministra do STF Carmen Lúcia afirmou, numa das sessões do julgamento: “Não estou julgando pessoas que em diversas situações tiveram condutas sérias. Estou julgando apenas se houve a prática imputada pelo Ministério Público”. Não foi condenada a vida de Genoino, mas um ato específico que ele cometeu. Mesmo um seu colega de partido, o ex-ministro Olívio Dutra, disse, sobre as condenações, que “essas pessoas não foram julgadas pelo seu passado, mas por suas atitudes no presente.”

    “Um veículo de imprensa ou jornalista tem uma visão política distinta da minha. Por isso, defendo o fechamento desse veículo, ou a demissão sumária desse jornalista”.

    Tal pensamento só indica o quanto o conceito de liberdade de expressão ainda não se enraizou no Brasil. Nos países avançados, jornalistas expressam a opinião que quiserem, sem que ninguém peça suas cabeças (para pôr quem no lugar? Aqueles que os atacam?). Há revistas e jornais mais à direita ou à esquerda no espectro político, mais “populistas” ou “elitistas”, e todos convivem em harmonia, cada qual em sua linha editorial. Discordâncias de leitores são normais e até desejáveis, em uma sociedade democrática. Perigoso é não existir contraponto, diversidade de visões, ou uma imprensa que desagrade (a brasileira, aliás, ao contrário do que muitos apregoam, é uma das menos críticas do mundo). Ninguém é obrigado a ler este ou aquele jornal ou revista. Mas é obrigatório reconhecer o direito de existência deles.

    “O quebra-quebra promovido por black blocs em cidades brasileiras é legítimo porque a polícia, muitas vezes, é violenta também.”

    Argumento similar ao primeiro aqui contestado. Vamos, contudo, ao chamado Imperativo Categórico, de Immanuel Kant, um dos principais filósofos de ética, exposto em “Metafísicas da Ética”: “Aja sempre de acordo com regras que você gostaria de ver todas as pessoas racionais seguindo como se fossem leis universais”. Sinteticamente: não se comporte do jeito que você condena nos outros. Ética é “manter a pose”, o equilíbrio, mesmo diante do pior inimigo. Um mau comportamento não confere salvo-conduto para outros maus comportamentos. Mais uma vez: uma conduta errada não justifica outra.

    “Não concordo com as opiniões de uma pessoa, por isso fico a desqualificá-la como ser humano”.

    Atacar a pessoa em vez dos argumentos dela é algo pouco elegante e produtivo e outra tendência ruim dos debates brasileiros. Trata-se de um subproduto de nossa “cordialidade”, ou seja, nosso emocionalismo e aversão ao método e a relações impessoais, conforme definiu Sérgio Buarque. Supostas falhas ou incômodos pessoais não podem servir para destruir o raciocínio inteiro de um autor. Uma atitude assim, na verdade, revela não um descontentamento com dada opinião, mas com a própria existência de um pensamento diferente do seu. O bom leitor sabe que bons textos não são só aqueles com que ele concorda.

    “É muito rico e ostentador? Não pode. Temos de condená-lo.”

    A respeito da celeuma do “rei do camarote”, o jornalista e psicanalista Paulo Gleich escreveu, no jornal Zero Hora, que muitos que apontaram o dedo para ele estavam, na verdade, se autocriticando: “O desejo de que possamos viver em uma sociedade mais fraterna e igualitária é nobre (...). No entanto, linchar em praça pública quem parece indiferente a essas questões em nada contribui para amenizá-las. Apenas apazigua a culpa que carregamos por, apesar das boas intenções, também ostentarmos privilégios – e desejar ainda mais, sejam eles materiais ou não. Condenar Alexander é condenar esse pequeno rei que segue nos habitando, e que não combina muito com a imagem de bom samaritano que preferimos trajar ao sair para a praça, real ou virtual, na qual sempre tentamos ostentar nossa melhor imagem.” Ah, o inconsciente, esse implacável... Afora esse elemento psicanalítico, o linchamento virtual do “rei do camarote” também expõe a dificuldade de muita gente em entender o conceito de liberdade. Pode-se discordar de que Alexander de Almeida goze a forma mais rica (no sentido imaterial) de se atravessar a existência, mas cada indivíduo tem o direito de viver do jeito que quiser, sem ser importunado por isso – desde, é claro, que não vá contra as leis de seu país, algo que não parece ter ocorrido com o “rei do camarote”.

    Quase o mesmo pode-se dizer a respeito da reação ao comercial de uma marca de carnes protagonizado por Roberto Carlos. Goste-se ou não das músicas do compositor, concorde-se ou não com sua posição sobre biografias não-autorizadas, é direito dele usar sua imagem para vender o produto que quiser. Muitos vegetarianos que, raivosamente, o acusaram de hipocrisia e de traição de suas crenças o fizeram mais para abafar a frustração de, por vezes, sentirem uma vontade tremenda de também comer carne do que por razões ideológicas.

    “A existência da lamentável mídia de celebridades e de autores desonestos torna correto submeter sempre a produção de uma biografia à aprovação do biografado”.

    Os apoiadores do grupo Procure Saber bem poderiam buscar argumentos mais sólidos. Uma atividade não inviabiliza a outra. A existência da mídia de fofocas e de escritores descriteriosos não justifica combater todo um setor e impedir o trabalho dos profissionais sérios. Numa sociedade livre, as produções jornalística e literária não podem ter amarras, até para que os bons trabalhos possam se sobressair, e os maus, cair no descrédito e esquecimento.

    “Críticos de cinema/música/literatura só falam mal porque, no fundo, queriam estar no lugar do criticado, são artistas frustrados.”

    Essa é, geralmente, a primeira reação de leitores que se deparam com um texto crítico sobre o trabalho de um artista que apreciam. A ideia, porém, além de trair as rasas e cartesianas noções de psicologia de quem a emite (psicólogos sérios trabalham, atualmente, com uma visão mais complexa do sujeito, entendendo que as motivações para um ato são múltiplas), também não sobrevive a uma consulta à história do jornalismo cultural. T.S. Elliot, Ezra Pound, Bernard Shaw, Marcel Proust e Machado de Assis, para citar só uns, produziram críticas, analisaram obras de outros criadores, e não podem ser considerados artistas “frustrados”. Ademais, ainda que existam críticos que gostariam de ser artistas, isso não invalida tudo o que digam ou venham a dizer.

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