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    O lugar d'O Ateneu


    Repare: com poucas variações, as listas de maiores clássicos da prosa brasileira comportam Dom Casmurro, Quincas Borba e Memórias Póstumas, mais Grande Sertão, Policarpo Quaresma, Os Sertões, Vidas Secas, Macunaíma e A Hora da Estrela ou A Paixão Segundo G.H. É, mais ou menos, a noção cristalizada do nosso cânone (Blargh!, reagiria um “pós-moderno”), do que de melhor os escritores daqui já produziram.

    Mas o que seria da cultura sem confronto de ideias? Vamos a ele. Até o título de Euclides da Cunha, a lista parece muito justa. Vidas Secas, porém, abre a controvérsia. Bem poderia ser trocado por um menos lembrado de Graciliano Ramos, Angústia. E que tal Mário de Andrade e a supervalorizada Clarice Lispector cederem seus lugares a outro também pouco lembrado, injustamente pouco lembrado? O Ateneu, de Raul Pompéia (1863-1895), é que poderia estar na lista. Completando 130 anos de publicação neste 2018, o romance é mais bem realizado que Macunaíma – e sem a pretensão de “sintetizar” o Brasil – e mais amplamente reflexivo que os textos clariceanos – e sem aquela lenga-lenga.

    “Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu” é a frase de abertura. Vais encontrar uma obra singular na literatura brasileira, leitor, diz-te este articulista. O que a faz singular é, em especial, a ambientação. O Ateneu se passa inteiramente no espaço de uma escola. É curioso que esse cenário, escola, seja pouco empregado aqui. Música ao Longe (1936), de Erico Verissimo, Manual de Tapeçaria (1985), de Nilma Lacerda, e outros romances e contos têm protagonistas professores. Doidinho (1933), de José Lins do Rego, ambienta-se em parte num internato. Mas uma narrativa toda transcorrida num colégio, que não seja uma infanto-juvenil, entre as obras “sérias” (não as ditas “best-sellers”) talvez só tenhamos em O Ateneu e Informação ao Crucificado (1961), de Carlos Heitor Cony. Escola é tema universal, bastante presente nas artes – o cinema, por exemplo, já cansou de abordá-lo, em produções como o sentimentalista Sociedade dos Poetas Mortos (EUA, 1987), o delicado Adeus, Meninos (França, 1987) e o nervoso Entre os Muros da Escola (França, 2010). Mas à ficção literária brasileira o tema parece interessar pouco (e evitemos aqui conclusões sociológicas para a questão).


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    Naquela Era de Ouro do romance, o século 19, O Ateneu seguiu um caminho comum: foi publicado em folhetim, no jornal carioca Gazeta de Notícias, para mais adiante, no mesmo 1888, sair em livro. Algo inovadora para a literatura brasileira de então (Machado lançara Memórias Póstumas sete anos antes), é uma narrativa sem ordem cronológica e sem exatamente um enredo. O personagem-narrador, Sérgio, adulto, costura lembranças de episódios da adolescência vivida como aluno interno do colégio Ateneu às reflexões e emoções que elas lhe causam e a uma análise psicológica dos personagens envolvidos.

    O colégio projetava uma imagem imponente à sociedade carioca, imagem que o diretor Aristarco e os professores, com falas pomposas e ocas, esforçavam-se para manter. Não contavam com a perspicácia de Sérgio, que, num arco dramático de perda da inocência, expõe como foi percebendo e até aproveitando os ardis do local. As ilusões que mantinha sobre o internato, nutridas pelas visitas prévias que fez, desmoronam. Lá, Sérgio de fato “encontra o mundo”: poucos seres humanos admiráveis em meio a muitos mesquinhos, capazes de atos que ele, menino de 11 anos, não imaginava.

    Hábil nas descrições, Pompéia faz do personagem um narrador nada benevolente com os professores e colegas – um deles tem uma “meiguice viscosa de crápula antigo”. Se quase resvala no sentimentalismo, reergue-se logo (“Quando meu pai saiu, vieram-me lágrimas, que eu tolhi a tempo de ser forte”), e é preciso ao esmiuçar o espírito de seu protagonista. “Estava aclimado, mas eu me aclimara pelo desalento, como um encarcerado no seu cárcere. Depois que sacudi fora a tranca dos ideais ingênuos, sentia-me vazio de ânimo; nunca percebi tanto a espiritualidade imponderável da alma: o vácuo habitava-me dentro” é, convenhamos, um trecho que diz mais do que, por exemplo, “A desistência é uma revelação. (...) viver me deixa tão impressionada, viver me tira o sono”, “deixei de existir sendo” e outras frases pseudoprofundas cometidas por Clarice Lispector.

    É livro de prosa fluente e história tocante. Impossível passar incólume, pois, meninos e meninas escolares que todos fomos, reconhecemos pelo menos aspectos das situações e pessoas descritas ali: diversões com colegas, remorso, rebelião, descoberta de assuntos e autores, um diretor inebriado com a posição de (micro) poder, pouca generosidade desinteressada (“Cada rosto amável daquela infância era a máscara de uma falsidade”) e muita implicância dos colegas – o que hoje chamamos de bullying. “Tudo ameaça os indefesos”, observa Sérgio, receoso com o “microcosmo” que via no Ateneu. E com razão. Os choques que leva no internato são, e aqui vai uma leitura inevitável, os choques que a vida em sociedade proporciona. Escola é um ensaio para o convívio social, a vida com o outro, relação da qual faíscas sempre se soltam. Sérgio fere-se, mas também aprende a se afirmar. O Ateneu nos reforça que aprender a lidar com o mundo é tarefa árdua. Algo que advém dos solavancos. Amadurecer, saber que a vida não é perfeitinha, politicamente correta, do jeitinho que a gente quer: pois é, depois de 130 anos, o livro ainda tem muito a ensinar aos jovens que o lerem.

    Já aos escritores brasileiros de hoje, o semiautobiográfico O Ateneu é uma prova de que é possível fazer literatura ensimesmada, íntima, sem se perder em narcisismo ou metalinguagem excessiva. Os melhores romances são os que olham para dentro e para fora, ao mesmo tempo, num diálogo. É prova também de como é mais rico um texto literário que supera reducionismos políticos e que não se deixa levar pela modinha ideológica da hora, preocupando-se, isso sim, com os dilemas morais que brotam em todo ser humano, de qualquer tempo. Raul Pompéia conseguiu distanciar seu romance do debate político inflamado de sua época, a da transição da Monarquia para a República – embora não tenha conseguido se distanciar. Morreu no Natal de 1895, após ser alvo de uma prática ainda hoje comum no meio intelectual (ou que se diz assim) brasileiro: o ataque pessoal por causa de preferências políticas. Não suportando a baixeza de textos contra ele publicados na imprensa (impossível não associar aos atuais linchamentos nas redes digitais), motivados por uma declaração de apoio que dera a um político, Pompéia se suicidou. Dos poucos livros que escreveu, O Ateneu foi o que mais resistiu ao tempo.

    O tempo. É justamente sobre a passagem dele que reflete o marcante parágrafo final. Como o Ateneu colégio também acaba, por ação de um incêndio, Sérgio nota que o tempo se encarrega de dar fim a tudo. “Saudades verdadeiramente? Puras recordações, saudades talvez se ponderarmos que o tempo é a ocasião passageira dos fatos, mas sobretudo – o funeral para sempre das horas.” Indestrutível é a memória. Para o bem ou para o mal, é o que ninguém nos tira. Perdura também a arte – como a expressa em O Ateneu, que, por tantas dimensões, deve ser mais lembrada e comentada. Eis este Caderno* ajudando.

    *Texto originalmente publicado no Caderno de Sábado do jornal Correio do Povo, em 22 de dezembro de 2018.


    lucas colombo assinaturaLucas Colombo

    Jornalista, professor, colaborador de revistas e cadernos de cultura, editor do Mínimo Múltiplo, organizador do livro "Os Melhores Textos do Mínimo Múltiplo" (Bartlebee, 2014).


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