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    Uma breve história de um pai


    (Ou uma certa esperança)

    Mais uma noite em que andei léguas tiranas embalando meu filho. Pulso esquerdo aberto. Cãibras e dores musculares nas duas pernas. E ele segue chorando, impaciente. Inventei duas dezenas de melodias assobiáveis e nada dele dormir ou se acalmar. Um bebê é um ser insaciável. Extremamente carente e que não sabe sofrer calado. Retira o sono e a paz de todos a sua volta. Bagunça a rotina e esculhamba a casa. Até os gatos estão em polvorosa. Que beleza ou magia há nisso?

    Com o nenê em minha vida, meu ego e minha libido se tornam dispositivos sentimentais desnecessários, inúteis. Aliás, qualquer coisa que eu sinta é fútil, pois tenho um recém-nascido para criar. É o que me dizem quando me queixo. Meus bens materiais, meus discos, filmes, livros e jogos do Internacional são igualmente fúteis. Estão em um segundo plano e deverão retornar a ser prioridade, ou algo próximo a isso, depois, em algum período em que meu filho não precisar mais tanto de mim. Mas quando se dará isso? Eu me pergunto e temo pela resposta.


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    Já dei mais de vinte voltas pelo apartamento. Terei mais um dia terrível pela frente. Meu filho ainda acordado. Não está mais nervoso como antes. Apenas faz força com as perninhas e dá breves gemidos. Eu poderia ter um colapso nervoso, mas não posso me dar a esse luxo. O fato é que me propus a ser um bom pai. Mesmo sem saber o que isso signifique ou como fazê-lo. São duas da manhã. Onde estão meus amigos agora? Sinto falta das conversas, piadas, confidências. Tenho ânsia de ligar para cada um e despejar essas coisas sobre as quais reflito. Contudo, não quero ser inconveniente. Eles, junto das demais "futilidades", também estão nesse segundo plano. Uma espécie de terra dos sonhos, que tendo a supervalorizar a cada dia.

    Meu filho enfim adormece em meus braços. O peso do mundo em minhas mãos. O coitado nada sabe. Nada sofreu de fato. Cólicas e vômitos são café pequeno perto do que virá. O mundo ainda vai castigá-lo um bocado. Mas agora, com essa luz branda de abajur e uma caminha vazia, eu detenho toda a maldade e o protejo. Até quando? Deixo seu corpo repousar no berço, como se fosse uma peça de cristal. Logo, logo ele acordará para mamar.

    Me deito. Preciso dormir urgentemente. Entretanto, meu delírio não cessa. Penso no livro A queda, de Diogo Mainardi, em O filho eterno, de Cristovão Tezza, e O pai da menina morta, de Tiago Ferro. Meu fardo não é nada. Eles sim tiveram uma história de dor e desespero para contar. E sobreviveram. Eu não posso me queixar.

    Eu não posso me queixar.

    Ainda mais porque logo na sequência do devaneio me vem a imagem de minha avó, que teve paralisia infantil na década de 30 e assim viveu até os 74 anos. Criou seus três filhos manca de uma perna e quase na miséria. Minha teimosia vem daí. Vou ser um bom pai.

    De supetão ouço um grito. Depois vem o choro forte. É meu filho. Ele mama em sua mãe. Ela está exausta, esgotada. Mas sorri e conversa com ele. Conta algumas coisas que se passaram e se passam conosco, enquanto preparo o café. Abro a janela. O sol furou as nuvens, porém o frio persiste. Me arrumo. Visto a criança. Pego um pano de cinco metros, faço uma amarração, encaixo o menino junto ao meu peito e saio para a rua.

    Ele olha atento a sua volta. O sol lhe machuca as vistas e ele mesmo assim insiste em ver. Árvores. Pássaros. Postes. Muitos fios. Carros. Comércio. Pessoas. Jovens passam distraídos. Homens adultos e velhos também. Só as mulheres e as senhoras percebem que há um bebezinho em meio àquele pano. Uma delas me aborda.

    - Oh, que amor! Qual o nome dele?

    - Murilo.

    - Lindo nome. Olha essa touquinha!

    E faz um gesto para o guri, como se lhe tocasse a ponta do narizinho com a mão. Murilo prontamente sorri. Depois gargalha.

    - Estou com um irmão em coma no hospital. Voltei de lá agora. Fiquei arrasada, mas ver uma criança assim dá uma certa esperança na gente, não é mesmo?

    Eu disse que sim.

    E nunca fui tão sincero em toda a minha vida.

    @lsbarroso


    lucas barrosoLucas Barroso

    Jornalista e escritor, autor de "Virose" (2013), "Um Silêncio Avassalador" (2016), "Um Gato Que Se Chamava Rex" (2018) e "O Tempo Já Não Importa" (2020).



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