social link youtube social link twitter social link facebook social link instagram

    logotipo mm


    patreon

    barra vermelha

    Por que ir às “Raízes”


    Muitos brasileiros têm-se espantado com as desavenças políticas – ou, como preferem uns, a “intolerância” – dos últimos tempos. Como é possível populares, na rua, dirigirem palavrões à então presidente da república? Como é possível uma celebridade cuspir num casal que discorda de seu apoio ao partido que estava no poder? E uma médica se recusar a atender o filho de um militante petista, enquanto uma editora rejeita lançar livro já aprovado porque seu conteúdo é crítico ao governo petista? E as trocas de insultos entre “coxinhas” e “mortadelas” nas redes sociais? Não somos um povo pacífico, “cordial”?...

    Pois a surpresa maior é... haver surpresa. A polarização política atual não é a primeira registrada nestas terras tropicais. Para lembrar duas: no fim do século 19, o Brasil se dividiu em monarquistas e republicanos (momento muito bem representado no romance “Esaú e Jacó”, de Machado de Assis); em meados do 20, em getulistas e lacerdistas. O espírito de patota também sempre se fez presente no campo da cultura: praticantes de um cinema facilmente digerível (“comercial”) x cinema de linguagem rebuscada (“de arte”), artistas concretos x neoconcretos, fãs de telenovelas x fãs da opinião de que telenovelas “alienam”... O passionalismo, aqui, é constante, em praticamente todas as discussões e atitudes.

    Sabe disso quem alia o conhecimento de História à observação do cotidiano brasileiro e à leitura do clássico “Raízes do Brasil”, do ensaísta e historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-82). O livro é a melhor interpretação do Brasil já realizada, a obra mais importante já escrita de análise histórico-cultural brasileira. Neste 2016, completa 80 anos de publicação, continuando, como todo clássico, a nos iluminar questões, a nos ajudar a compreender quem somos e onde estamos. Nosso caráter extremado, que faz mesmo os debates mais inocentes serem levados ao lado pessoal, como se fossem questão de honra, é corolário do que Buarque chama de “cordialidade” brasileira, conceito apresentado no capítulo 5 do livro, O Homem Cordial. Muitos, inclusive, entendem o conceito erroneamente, ao distinguirem só o lado festivo da ideia – a noção de que o brasileiro é acolhedor e simpático, o que é, mesmo –, sem percebê-la no todo. Ao identificar “cordialidade” no brasileiro, Buarque faz um alerta, quase uma crítica, ao seu povo.


    Publicidade


    Cordial vem do termo latino cordis, que significa “coração”. O brasileiro seria guiado mais pela emoção que pela razão, um povo no qual se verifica um “predomínio do elemento emotivo sobre o racional” e que, assim, não consegue conceber relações sociais fora dos critérios de afeto. Valoriza mais laços de amizade do que mérito, mais imediatismo do que raciocínio de médio e longo prazo, mais improviso do que organização. Ou seja, Buarque avisa: cuidado, brasileiros. A tendência de sempre agir com o “coração”, para o bem ou para o mal, traz mais problemas do que benefícios.

    Um desses problemas é levar o modelo familiar, caloroso, pessoal, ao espaço público, o que asfixia o interesse da coletividade. Esse pendor se explica, é claro, pelos nossos primórdios: “Raízes do Brasil” mostra que, no longo período colonial, o quadro familiar era o mais poderoso; os engenhos eram como pequenas cidades comandadas pelo “pai”, o senhor de engenho. Em decorrência disso, o brasileiro ganhou, como traço de comportamento, não admitir relações formais e transformar tudo em matéria pessoal, com a emoção se sobrepondo ao planejamento e a normas de convivência e concorrência, a leis (“Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro”). Burla regras – o famoso “jeitinho” – e trata espaços públicos (impessoais) como extensão de sua casa, sem distanciamento.

    Para buscar exemplos disso, nem é preciso ir à política. As Olimpíadas do Rio de Janeiro foram outro fato recente em que muitas condutas filhas do “homem cordial” ficaram expostas. Ao mundo, aliás. A imprensa internacional estranhou a mania dos torcedores locais de vaiar e xingar adversários de nossos atletas, quaisquer que fossem, mesmo em esportes “frios” como tênis de mesa e salto com vara (“O desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo representa um aspecto da vida brasileira que raros estrangeiros chegam a penetrar com facilidade.”). Competidores estrangeiros disseram que a reação intensa do público os desconcentrou e os prejudicou nas provas. Chamou a atenção dos visitantes, ainda, nosso desapreço por cumprir horários e nossa disposição ao improviso, à gambiarra, perceptível em algumas instalações erguidas no Rio, em soluções dadas a problemas logísticos e mesmo na cerimônia de abertura, entendida por um de seus diretores justamente como uma celebração do jeitinho, devido aos cortes no orçamento. Pois a leitura de “Raízes do Brasil” permite compreender que o brasileiro comporta-se do modo mais informal possível e tende à desorganização por não se identificar com regras estabelecidas para o convívio social, que valem para todos e são, portanto, impessoais. Os laços que importam são os afetivos. Norteado sempre por princípios emotivos e familiares, o brasileiro é incapaz de lidar com questões que exigem postura mais distanciada e “clínica”. Isso responde, em boa parte, por que consideramos o estilo contido de alemães e franceses, por exemplo, muito antipático, “metido”. Ainda que seja o de um francês que chora no pódio pelas vaias que recebeu da plateia no estádio...

    Patrimonialismo – “Raízes do Brasil” também dá conta de que, ao contrário dos Estados Unidos, o Brasil não nasceu sob valores liberais, e sim sob uma confusão entre os âmbitos público e privado (“a gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular”). É o chamado Patrimonialismo, notabilíssimo hoje devido ao escândalo do petrolão, a descoberta de que, numa empresa pública, se montou um esquema de corrupção que beneficiou determinado grupo político e seus aliados. Tantos favorecimentos, privilégios, tentativas de salvar amigos demonstram que “A ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós” (cap. 6). O Brasil, o autor nos explica, não conseguiu se livrar de sua herança ibérica: personalista, aventureira, descompromissada. E o catolicismo faz parte do pacote. Buarque observa que a religião trazida pelos colonizadores portugueses contribuiu, por valorizar desprendimento, para que não nos desenvolvêssemos como uma sociedade organizada – o oposto do ocorrido nos países anglo-saxões, cuja religião protestante valoriza disciplina, trabalho e acúmulo de riqueza. São muitos, enfim, os vícios de origem a nos puxar para baixo.

    Quase como num processo de psicanálise, “Raízes do Brasil” vai à infância e à adolescência do país para entender o adulto problemático que ele se tornou. Sérgio Buarque chegou a afirmar, 12 anos após a primeira edição do livro, que o homem cordial, forjado no nosso passado agrário, desapareceria com a urbanização e a industrialização do Brasil. Não desapareceu. Apropriação da coisa pública por interesses privados e comportamento emotivo continuam marcas culturais indeléveis por aqui. Neste 2016 em que faz 80 anos, (re)ler esse clássico pode nos levar a refletir que, em meio a tanto clamor por mudanças, talvez a maior que a sociedade brasileira precisa fazer, para finalmente se inserir no mundo moderno, é a mais difícil e lenta, por demandar tomada de consciência, educação e reformas: mudança de mentalidade. Mudança naquilo que está mais enraizado em nós.

    * Texto originalmente publicado no Caderno de Sábado do jornal Correio do Povo, em 26 de novembro de 2016.

    Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
    @lucas_colombo


    lucas colombo assinaturaLucas Colombo

    Jornalista, professor, colaborador de revistas e cadernos de cultura, editor do Mínimo Múltiplo, organizador do livro "Os Melhores Textos do Mínimo Múltiplo" (Bartlebee, 2014).


    Mais de Lucas Colombo

    Receba a newsletter

    Joomla Forms makes it right. Balbooa.com

    Mínimo Múltiplo

    Porto Alegre - RS

    Rua João Abbott, 283/202
    Petrópolis - Porto Alegre/RS - CEP 90460-150
    By iweb