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    Os desastres da guerra


    A distância entre os países, geográfica e militar, é imensa. Mas o que se viu, há exatos 30 anos, foi um confronto dos dois por causa de um pedacinho de terra.

    Em 2 de abril de 1982, argentinos invadiram de surpresa as Ilhas Malvinas, situadas a 500 km da costa, visando a retomar o território perdido no século 19 para os ingleses – os primeiros a desembarcar lá, em 1690. Os militares, no poder desde o golpe de 1976, consideraram ingenuamente que a Inglaterra, diante da invasão, aceitaria ceder suas longínquas Falklands, pouco habitadas e de economia desimportante, por via diplomática. Mas não: do outro lado, estava a “Dama de Ferro” Margaret Thatcher, que de pronto organizou a reação. Em maio, a força-tarefa inglesa chegou ao Atlântico Sul e, em junho, após 25 dias de ofensiva por terra e 255 baixas, recuperou o domínio sobre as ilhas.

    Os adjetivos que hoje vêm colados a qualquer menção à Guerra das Malvinas – inútil, bravateira, insensata – se confirmam quando se fica sabendo do contexto em que ela ocorreu. Não há muita dúvida de que o general-presidente Leopoldo Galtieri ordenou a invasão, atiçando a potência militar britânica, com o intuito de desviar a atenção popular da economia em crise e da repressão a opositores. Era um meio de insuflar nacionalismo no povo e obter apoio, já que se tratava de uma demanda antiga do país (Thatcher, em Londres, também enfrentava problemas internos e viu no conflito chance de se fortalecer). E, pelo registrado depois do anúncio da ocupação, deu certo: políticos da oposição, de esquerda, uniram-se ao governo, e a Plaza de Mayo, na capital, foi tomada por portenhos a apoiar o ato. Com a rendição dois meses depois, no entanto, esse apoio ruiu, e a ditadura, uma das mais sangrentas da América Latina no período, chegou ao fim. Em 1983, o poder voltou aos civis.


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    Há quem creia ter a guerra se tornado, nesses 30 anos, “assunto tabu” na Argentina, que, com seu proverbial orgulho, evitaria ao máximo lembrar a derrota e seus 649 mortos. Pode ser tabu entre parte da população, mas nas produções culturais o tema é abordado com relativa frequência – e sempre em tom condenatório. Embora para os mais velhos, e para o governo, a soberania das ilhas ainda seja questão mobilizadora (vide os recentes protestos da presidente Cristina Kirchner contra a “militarização” do local pelos britânicos), o uso político da invasão e o conhecimento da crueldade das batalhas e das condições em que os soldados, na maioria recrutas de 18/19 anos, foram mantidos, tornaram a campanha pelas Malvinas alvo de reprovação praticamente unânime na sociedade argentina. E, sem grandes pruridos, sua arte logo se pôs a refletir sobre isso.

    Como um trauma ainda longe de superado, a guerra apareceu, desde 1982, em livros e canções de autores das mais variadas vertentes estéticas. Na música, surgiu em letras feito a de “No bombardeen Buenos Aires”, composta pelo roqueiro Charly García no período mesmo do conflito. Na literatura, veio especialmente em um conhecido poema em prosa de Jorge Luis Borges (“Juan López e John Ward”, publicado em “Os conjurados”, de 1985) e num romance de Rodolfo Fogwill, “Os pichicegos” (1982). O cinema, porém, talvez seja a arte argentina que mais tem tratado de frente o delírio Malvinas, na mesma chave crítica. O ataque (o termo militar se justifica) foi quase imediato, inclusive.

    Los chicos

    A primeira ficção sobre a contenda, “Los chicos de la guerra”, de Bebe Kamin, foi rodada já um ano e meio depois. Adaptada do livro homônimo de Daniel Kon, é um drama bélico clichê, em que três garotos de distintas personalidades e gradações sociais têm as vidas abaladas pelo conflito. Levam um dia-a-dia normal de jovens, com escola, anseios profissionais e namoros, até vir a convocação. Suas histórias, então, cruzam-se nas Malvinas. Na volta para casa, sofrem dificuldades de readaptação: desemprego, depressão e até violentos distúrbios psiquiátricos.

    “Los chicos” tem produção pobre e (pelo contexto em que foi feito, explicável) abordagem sentimentalista, como prova a cena do pai lendo carta que enviará ao filho nas ilhas. Mas é, no geral, fiel aos fatos. Não faltam menções à cegueira patriótica que tomou conta da Argentina, nem planos dos soldados sujos e com frio, em pleno outono naquele lugar já gelado. O filme também os exibe a lidar com o despreparo técnico, com a brutalidade dos chefes – “Nos tratam pior do que o inimigo”, diz um – e a reclamar de fome, no que remete a outro fato amargo: famílias mandavam comida e agasalhos aos filhos, e as caixas nunca chegavam, tal a desorganização, ou a má-fé, do exército argentino. Numa generalização da conduta dos meninos, todavia, mostra-os medrosos e inofensivos, até encantados com a luz das explosões, sendo que há vários relatos sobre a bravura com que argentinos travaram certas batalhas.

    Apesar de tratar diretamente da guerra, o drama humano, em suma, é o foco de “Los chicos de la guerra”. Mesma proposta é a de “Iluminados pelo fogo”, de 2005, prêmio Goya de melhor filme estrangeiro em língua espanhola. Também adaptado de um livro, do jornalista Edgardo Esteban, ex-combatente, traz justamente o repórter e veterano Esteban, vivido por Gastón Pauls, a relembrar sua ida às ilhas, após a tentativa de suicídio de um companheiro de trincheira, Vargas. Entre tomadas da paisagem erma e ventosa do arquipélago, também apresenta recrutas (Galtieri optou pelos novinhos para poupar a casta militar) a andar na lama, passar fome e frio e pensar no que deixaram para trás. E, é claro, reprova o desatino daquela peleja. Uma cena irônica e muito ilustrativa é a do tenente, perante a tropa de, como chama, tagarnas (soldados ineptos), dando vivas à pátria e subestimando os ingleses “há semanas dentro de um navio, não adaptados ao frio”. A fala é interrompida por um ataque preventivo de um avião britânico contra um alvo ali perto. Ao levantar do chão, disfarçando o susto, o tenente limita-se a perguntar se há feridos. Não, no momento. (veja aqui)

    Dirigido por Tristán Bauer, “Iluminados pelo fogo” tem produção bem mais apurada que a de “Los chicos” – as cenas de combate são excruciantes – e, outra diferença, não reduz os soldados a apenas medrosos. Não consegue, no entanto, fugir do melodrama (este elemento tão latino) no final, quando Esteban, para se entender com o passado, volta às ilhas e chora, com uma canção lamentosa ao fundo. Esta parte, aliás, foi gravada nas próprias Malvinas, pela primeira vez num filme sobre a disputa. Veem-se os campos minados, o cemitério dos soldados e até um aviso escrito: “Argentinos: serão bem-vindos quando deixarem de reclamar a soberania e aceitarem nosso direito à autodeterminação”. Os kelpers, habitantes do lugar, realmente já expressaram que querem seguir pertencendo à Grã-Bretanha. Mas a postura crítica do filme se enfraquece no último instante, com a aparição, nos créditos, da frase “Las Malvinas son argentinas” – a mesma de muitas placas espalhadas pelo país. Se, como expôs, a guerra foi tamanho pesadelo, e o desejo dos kelpers se conhece, por que insistir na obtenção das ilhas? (Boa pergunta para la presidenta, também).

    “Iluminados pelo fogo”, porém, toca em outro ponto tenebroso: o suicídio de veteranos. Calcula-se que mais de 400 se mataram nessas três décadas. Ao regressarem, os recrutas, muitos com traumas de guerra, não tiveram proteção oficial, nem assistência psicológica. A sociedade, após o furor de abril, recebeu-os com indiferença, e o governo, ao que parece, queria esquecê-los. Só em 1990 começou a ser paga uma pensão. Nas ilhas, também houve tortura. Fica-se sabendo, em “Iluminados”, que Vargas, por ter roubado para comer, foi punido com estacamiento: horas deitado no chão gélido, com mãos e pés amarrados a estacas. “Los chicos de la guerra” tem cena parecida. Os dois longas, assim, cumprem ainda papel de denúncia, já que os comandantes argentinos obrigaram os soldados a jurarem não contar nada sobre o que viveram nas Malvinas, fato que “Iluminados” cita. Felizmente, contudo, não faltaram fontes para os livros e roteiros.

    Pano de fundo

    “El visitante” (1999), de Javier Olivera, e “Palabra por palabra” (2008), de Edgardo Cabeza, não lançados no Brasil, igualmente são produções ambientadas na guerra. O cinema argentino, entretanto, de reconhecida maturidade, tem abordado a Guerra das Malvinas mesmo em dramas sociais, romances e comédias, em narrativas em que o conflito bélico não está na frente da ação; é um dos elementos de “pano de fundo”. Logo em 1988, o diretor Miguel Pereira fez “A dívida interna”, título chato e sentimentalóide sobre um professor que vai lecionar numa aldeia andina e adota um aluno órfão, com quem depois perde contato até saber que virara marinheiro e estava no General Belgrano, navio afundado pelos ingleses. Melhor pular dez anos e conhecer “O mesmo amor, a mesma chuva”, dirigido por Juan José Campanella, o mesmo realizador do oscarizado, e ótimo, “O segredo dos seus olhos”, de 2010. Os protagonistas também são Soledad Villamil e Ricardo Darín. História de amor com alguns chavões do gênero, mas bons diálogos, assenta-se, como de praxe em Campanella, no contexto social e político argentino recente – aqui, do fim do regime militar ao governo Carlos Menem.

    A guerra é um dos eventos históricos a circundar as idas e vindas do casal. Em off, ele, escritor, vai comentando as situações e, ao presenciar a redação da revista em que publica contos parada, assistindo feliz na TV ao pronunciamento de Galtieri, pensa: “O governo, ébrio de orgulho pelo êxito da nação, decidiu ampliar seus horizontes e nossa capacidade de espanto”. O rosto de Galtieri aparece através de uma garrafa de vinho posta ao lado do aparelho, numa troça com sua fama de bebedor. Mais adiante, o ufanismo irrestrito de então é representado por uma cena em que se vê a redação, espaço onde deveria haver crítica, toda decorada com bandeiras nacionais.

    Darín, grande ator, do mesmo modo protagoniza “Um conto chinês”, de Sebastián Borensztein, sucesso de bilheteria na Argentina e no Brasil em 2011. Como Roberto, solitário comerciante que se depara obrigado a acolher um jovem chinês, monta a comédia de contrastes clássica, mas seu personagem não é um tipo raso. A guerra nas Malvinas surge brevemente, porém de forma marcante, para explicar sua misantropia e amargura. Roberto é um veterano, e este passado também explica sua mania de colecionar notícias de jornal sobre casos estúpidos: ele se interessa por absurdos porque vivenciou um. O flashback é na parte final, mas uma cena do início traz Roberto a recusar um presente de fabricação inglesa, o que vai ao encontro do ressentimento contra a Grã-Bretanha e da convicção de que a guerra foi uma loucura, mas a causa foi justa, ainda existentes em veteranos e em parcela da população. O personagem, por sinal, depõe que os ingleses trataram prisioneiros inimigos “como merda”, sem se referir à truculência dos próprios militares argentinos contra seus homens.

    Se não entram na categoria “grande cinema”, os títulos acima também não maculam a tradição de bons roteiros, atuações e “técnica” (fotografia, som...) do cinema argentino. Este, ao tematizar tal fato indigesto da História do país, seja em narrativas duras ou suaves, de frente ou na diagonal, contribui para não ser esquecido um episódio que alguns (muitos) almejam ocultar. Quando revela traumas de uma sociedade e mostra questões políticas reverberando ali, na vida das pessoas, a arte cumpre uma de suas tarefas mais bem-vindas e salutares. “A ficção”, disse o escritor Julio Cortázar, outro festejado nome da cultura argentina, “é a história secreta das sociedades”. Pois no caso da ficção fílmica portenha em relação à guerra e seus efeitos, este papel tem sido executado com eficiência e bom senso. Tudo o que faltou aos generais de 1982.

    * Texto originalmente publicado na revista Continente Multicultural de abril de 2012.

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